outubro 17, 2021

Abelardo e Heloísa

Pedro Abelardo foi um filósofo francês que ficou conhecido pela tragédia proporcionada a partir do seu romance com a erudita Heloísa de Argenteuil. O seu legado é maior, teve grande impacto na filosofia e teologia da época medieval e influenciou o ensino tendo tido influência no surgimento da própria Universidade enquanto instituição. Ousado e muito à frente do seu tempo, muito deve, segundo ele, ao castigo que lhe foi infligido. O tio de Heloísa, após descobrir o casamento em segredo de ambos, mandou castrá-lo. Como legado pessoal, ficaram as cartas que escreveram um ao outro, numa época posterior e que podemos ler nesta obra. O texto das mesmas é bastante direto, expondo de forma clara o impacto dos acontecimentos sobre a pessoa de cada um deles.

Tocou-me particularmente a discussão de Abelardo sobre a liberação do desejo, e que passo a citar partes:

"Considera os misteriosos desígnios que a divina Providência realizou em nós; com que misericórdia o Senhor fez de sua obra justiceira um meio de regeneração; com que sabedoria ele se serviu dos próprios maus para mudar em piedade a impiedade, e como um único ferimento, infligido por justiça a meu corpo, curou nossas duas almas.

(...) 

Tu sabes a que torpezas minha concupiscência desenfreada havia levado nossos corpos. Nem o pudor, nem o respeito de Deus me arrancavam, mesmo durante a Semana Santa, mesmo no dia das maiores solenidades religiosas, do lamaçal em que eu rolava. Tu recusavas, tu resistias com todas as tuas forças, tu tentavas a persuasão. Mas, aproveitando-me da fraqueza de teu sexo, eu forcei mais de uma vez teu consentimento, através de ameaças e de golpes. Meu desejo de ti tinha tamanho ardor que esses miseráveis e obscenos prazeres (hoje não ouso mais nem mencioná-los!) passavam para mim à frente de Deus, à frente de mim mesmo. Podia a clemência divina me salvar de outra forma senão mos proibindo para sempre?

(...) 

diminuído dessa parte do meu corpo que era a sede dos desejos voluptuosos, a causa primeira de toda a concupiscência, pude crescer de todas as outras maneiras. Aquele de meus membros que sozinho pecara expiou na dor seus gozos pecaminosos: não foi tudo justiça? Tirado da abjeção onde eu mergulhava como no lodo, fui circuncidado de corpo e de espírito. Tornei-me assim mais apto ao serviço dos altares, pois que nenhum contágio carnal podia agora me atingir e me manchar. 


Vê de que clemência fui objeto: não tive que sofrer senão no membro cuja privação serviria à salvação da minha alma; toda mutilação visível, que pudesse me ter prejudicado no desempenho dos meus deveres públicos, me foi poupada. Ao contrário, o exercício de tarefas honestas me foi facilitado, na própria medida em que fui liberto do jugo tão pesado da concupiscência.

(...)

Conta-se que vários sábios famosos, desejosos de conservar sua pureza interior, levantaram a mão contra si mesmos, apagando assim de sua vida a mancha da concupiscência. O apóstolo, tu o sabes, pediu a Deus que o livrasse desse "aguilhão da carne". Não foi atendido; mas o grande filósofo cristão Orígenes nos dá um exemplo ilustre: para apagar o fogo em que ardia, não temeu mutilar a si mesmo. Ele havia tomado no sentido literal o texto bíblico que declara bem-aventurados os que "se castraram tendo em vista obter o reino dos céus".

2 comentários:

  1. "fui circuncidado de corpo e de espírito"
    Muito forte esta expressão.

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    1. Sem dúvida. É um sentimento que percorre uma boa parte das cartas na parte final do livro. Intenso.

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