agosto 22, 2021

Lotaria: da tradição à dopamina

“A Lotaria” é o conto mais conhecido de Shirley Jackson. Publicado em 1948, na The New Yorker, gerou uma tal onda de reações no público, de estupefação e especulação sobre o sentido da história, mas também muitas, na forma de telefonemas e cartas, com ameaças à revista e à autora, tendo a história sido mesmo banida nalguns locais. A história é bastante curta, tem apenas 3 mil palavras, por isso leiam-na antes* de continuar a leitura que contém spoilers.

Jackson respondeu na altura, a quem a questionou sobre o sentido da história:

“Explicar exatamente o que eu esperava que a história dissesse é muito difícil. Suponho que, ao estabelecer um rito antigo particularmente brutal no presente e na minha própria aldeia poderia chocar os leitores da história com uma dramatização gráfica da violência inútil e da desumanidade geral nas suas próprias vidas.”

O choque aconteceu, ou seja, a primeira parte da sua intenção funcionou, no entanto, a segunda parte não passou. Ou seja, os leitores não compreenderam o texto como uma crítica à violência presente nas suas vidas, mas antes como um ataque aos seus costumes. 

Em parte, isso é antecipado pelo próprio conto, quando expõe a problemática da psicologia de grupo. As tradições existem porque os grupos, as comunidades, reiteram as mesmas, e quem ousa sair do caminho, colocar em causa a tradição, é posto à margem. Logo as tradições prosperam, incólumes à crítica, mas também a qualquer evolução. Mesmo que aprendamos factos novos sobre a realidade, estes, pela força da cola do grupo, não conseguem colocar em causa a tradição.

Assim, quando alguém diz ou escreve algo com a intenção de mudança, como é aqui proposto por Jackson, a reação natural é de condenação, não da crítica, mas de quem crítica, porque foi ele que abandonou a visão comum.

Por comparação direta, apesar de sem relação com o conto em particular, deixo o caso das Crianças de Llullaillaco. 3 múmias de crianças (15, 7 e 6 anos) que morreram há mais de 500 anos, descobertas a mais de 6 mil metros, num estado de preservação impressionante (de tal forma que não ouso aqui colar fotografias, pois como dizem alguns relatos “olhar para elas é como olhar para pessoas”). As 3, de origem Inca, terão sido vítimas de sacrifício para trazer benefícios à agricultura, ou seja, à sobrevivência da comunidade. O que leva as famílias a aceitar isto se não a crença na tradição suportada pela força de todo o grupo?

Indo um pouco além, na especulação de resposta. Anna Lembke, psiquiatra e professora universitária, especializada em adição, referiu a descoberta de que os sistemas de prazer e dor humanos se encontram na mesma área do nosso cérebro, e que por causa disso, sempre que temos grande prazer, logo a seguir sentimos grande dor, e vice-versa, pela força da regulação homeostática. Nesse sentido, quando a comunidade cria a dor mais dolorosa, a morte sem causa, depois virão sempre dias melhores, por mais que as previsões falhem, não é possível permanecer na dor para sempre. Ou seja, os sacrifícios funcionavam,  não porque faziam acontecer algo desejado, mas porque purgavam a fisiologia da comunidade...


* A Lotaria pode ser lida online,  no original na The New Yorker ou numa tradução em português de Luís Varela Pinto. 

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