outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

Muita da crítica que tenho visto, escuda-se na desculpa desse surrealismo para suportar a pseudo-mensagem da obra, e assim evitar dizer que não perceberam, mas também não querendo ficar de fora, seguem o caminho que tem seguido muita da crítica artística, que é não desconstruir efetivamente, e ficar-se pela superfície daquilo que parece. Existe um detalhe relevante, muitas das análises que se encontram online foram escritas após jogar apenas o 1º e/ou 2º episódios, que são sem dúvida o melhor, uma vez que a estranheza nessa fase é retida na expectativa de poder começar a ser desvelada nos episódios posteriores. Contudo, a partir do 3º episódio o jogo entra por um descalabro adentro em termos de personagens e fantasia em que múltiplos planos do mundo se misturam e vão tornando impossível dar sentido ao que se passa no ecrã.

Obviamente que podemos, e devemos, enquanto espectadores construir as nossas ideias sobre o que estamos a experienciar. Mas era importante o jogo ajudar. Era importante existir uma perspectiva, um olhar sobre a realidade apresentada pelo jogo. Num diálogo podemos ser chamados a tomar decisões por 3 ou 4 personagens numa mesma conversa! 


Parecendo interessante, e até um desafio ao design — esta abordagem ao diálogo com escolhas de múltiplos personagens em simultâneo — não deixa de ser uma frustração para quem joga, que começa a desligar-se das escolhas, já que estas não têm um sentido per se, parecendo servir apenas o progresso. É necessário escolher algo para que o jogo continue a andar. Um dos criadores — Jake Elliott— fala em manobra propositada:

"thinking about the player as a performer of the story. Just like an actor in a play, in a performance of any kind, has a lot of influence over how the performance functions, but they don’t write the script still (...) We didn’t want to let the player be strategic or play strategically. And that shows up in a lot of different ways in the game, and it’s been something that has been a design guideline that we’ve come back to a lot. We’re presenting the player with different choices but not really giving them the data to know which choice will impact the narrative, or even what’s going to happen when you make those choices." Jake Elliott, Polygon 

Se o conceito parece interessante — diminuir o lado estratégico, fazer  tender a agência para a performance em vez da história —, o problema está no final da visão desse conceito: pedir aos jogadores que exerçam escolhas sem informação. Isto é um absurdo que já tínhamos ultrapassado depois do que foram as narrativas interativas dos anos 1990, em que se colocavam escolhas na frente das pessoas para as quais nada se oferecia em termos de estratégia. Escolhas pelas escolhas. Mas se não sabemos porque escolhemos, porque havemos de escolher, porque havemos de investir na compreensão de um mundo e suas implicações, se de cada vez que somos chamados a intervir, não nos dizem sobre o quê ou porquê, nem sequer com quem.

Não digo que não possa ser interessante a incerteza num processo de escolha, nomeadamente a interface de navegação das estradas em KRZ é muito interessante, um misto entre enigma e exploração, mas quando falamos das personagens, das escolhas dos diálogos, se não nos é oferecido um ponto de vista, nem razões para a nossa intervenção, então os personagens assumem meras funções de peões. Elementos que servem a progressão da experiência, nada mais. Mas os personagens não são apenas mais um elemento narrativo, são o cerne da existência dessa, e se eles não assumem qualquer ação no seio da mesma, então deixamos de ter narrativa. Tal vai-se agravando com o avanço no jogo, já que em cada novo episódio vamos tendo cada vez menos intervenção no universo, até que no último episódio o design parece ter mudado completamente e assumindo a abordagem walking simulator.

Em termos de construção do mundo narrativo várias análises ao jogo têm tendido para o estabelecimento de comparativos com a poesia, já os seus criadores não se cansam de frisar o teatro como força principal. Contudo, se é teatro, é todo um teatro muito pobre em drama e narrativa. Compare-se isto que nos é dado a experienciar com o teatro em Hamlet, Rei LearMedeia ou Antígona? Não há história, além dos problemas da sociedade americana que são apresentados à distância e à mistura com a fantasia surrealista, menos ainda há drama, vemos os personagens atuar, mas nunca se criam formas de nos ligar a eles.


Dito tudo isto, o jogo consegue, por meio das artes visual e sonora,  e diga-se que por via da escrita que suporta o surrealismo imprimido, criar uma atmosfera extremamente envolvente. O universo é decalcado da literatura gótica americana — Harper Lee, William Faulkner... —, conseguindo transportar-nos para o seu interior. A arte visual 2d minimalista, tanto na forma como nas cores, é suportada por um uso de excelência de luz e sombras, que quase per se carregam toda a emocionalidade dramática que o jogo tem para nos oferecer.

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