janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

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