julho 25, 2021

O Fim da Grande Ilusão

“O Fim do Homem Soviético: Um Tempo de Desencanto” (2013) é uma tentativa de Svetlana Alexievich de nos ajudar a compreender o que aconteceu com o fim da União Soviética. Escrito a partir da captação de centenas de relatos orais, técnica de escrita em que se especializou, a autora procura a partir do interior de pessoas reais construir um mapa de recordações que possam iluminar os efeitos humanos da decadência soviética. Não é um trabalho propriamente académico, já que o enfoque se dá na emoção, no sentir de cada entrevistado, e Alexievich nunca tenta abstrair, generalizar ou sintetizar as leituras. O foco é o particular, o individual, o subjetivo, o humanamente concreto. Naturalmente que isso nos obriga a uma leitura mais atenta, não podemos ler aqui tudo como verdade, ainda que tudo seja baseado no que dizem pessoas reais — a realidade é constituída pela multiplicidade de dimensões construídas pelo olhar de cada ser humano. Mas também percebemos que muito do que é dito não nos é totalmente estranho, e empaticamente conseguimos aferir parte da sua veracidade. 

Este é um livro carregado de melancolia, de um enorme desencanto, algo que se percebe, não fosse a União Soviética ter sobrevivido por mais de 70 anos a vender ideais colossais, que alguns tiveram sempre dificuldade em aceitar e acreditar, mas muitos outros, anestesiados pelos efeitos da dureza da vida, foram usando como suporte moral da sua própria condição. Chegar a um ponto em que nos dizem que tudo aquilo em que acreditámos, desde crianças, não passou de uma ilusão, de uma mentira criada por outros para nos manietar, produziu um efeito interior absolutamente devastador. Alexievich diz que não pretendia julgar ninguém, apenas queria descrever “não a ideia como tal, mas a tragédia metafísica da vida das pessoas, que foi apanhada entre essas mós”.

Mas não é só de desencanto que Alexievich fala, dá conta também de muitos horrores, alguns pouco discutidos na cena internacional. Por coincidência enquanto lia este, fui lendo também “We Crossed a Bridge and It Trembled: Voices from Syria” (2017), e por vários momentos, enquanto lia as partes relativas à região do Cáucaso, por Alexievich  — sobre a Arménia, Geórgia, Abecássia, Ossétia do Sul, Chéchenia —, e cruzava certas descrições com os relatos da Síria — sobre violência e genocídios — só conseguia pensar: “como é possível sermos tão perversos?”, “regiões com milhares de anos de história, passarem por ciclos repetidos no tempo de total desprezo pela vida humana?”, “como podemos construir civilizações tão magníficas, e logo de seguida tudo destroçar, levar à decadência tudo o que antes nós mesmos construímos?” E assim, e há medida que mais livros sobre história antiga vou lendo, descobrindo os grandes colapsos civilizacionais, mais vou aceitando que sendo frágeis, o nosso maior problema não advém da Natureza, de outras espécies ou de grandes transformações do planeta, somos nós que criamos o melhor e o pior, somos nós os nossos próprios predadores.

Marx, Engels, Lenine e Estaline


O Fim do Comunismo e Marx

“Destruíram um país como este! Venderam-no a preços de saldo. A nossa Pátria… Para que qualquer um possa injuriar Marx e viajar pela Europa. Um tempo tão horrível como no tempo de Estaline…”

“Não correram para a liberdade, mas para as calças de ganga… para os supermercados… Compraram em embalagens vistosas… Agora também entre nós há muito de tudo nas lojas. Uma abundância. Mas os montes de chouriços e salames não têm nada a ver com a felicidade. Com a glória. Éramos um grande povo! Fizeram de nós um povo de vendilhões e especuladores… armazenistas e gestores…”

“Comunista era aquele que lia Marx, o anticomunista era aquele que o compreendia.”

“Eu e a minha mulher terminámos a Faculdade de Filosofia da Universidade de Petersburgo (então Leninegrado), ela empregou-se como porteira, eu como fogueiro na casa das caldeiras. Trabalha-se um dia inteiro, e fica-se em casa dois dias. Nesse tempo, um engenheiro recebia cento e trinta rublos, e eu, como fogueiro, recebia noventa, ou seja, aceitava perder quarenta rublos, mas em contrapartida obtinha uma liberdade absoluta. Líamos livros, líamos muito. Conversávamos. Pensávamos que produzíamos ideias. Sonhávamos com a revolução, mas receávamos não chegar lá. De um modo geral levávamos uma vida fechada, não sabíamos nada do que se passava no mundo. Éramos “plantas de interior”. Pensávamos em tudo, como depois de verificou, fantasiávamos: o Ocidente, o capitalismo e o povo russo. Vivíamos de miragens. Uma Rússia como a que havia nos livros e nas nossas cozinhas nunca existiu. Só nas nossas cabeças.”

“Com a perestroika tudo acabou… Surgiu o capitalismo… Os noventa rublos tornaram-se uma dezena de dólares. Com eles era impossível viver. Saímos das cozinhas para a rua, e então verificou-se que não tínhamos ideias, limitámo-nos a ficar sentados e a conversar todo aquele tempo. Vindas de qualquer parte, apareceram pessoas completamente diferentes – jovens de casaco encarnado e com anéis de ouro. E com novas regras do jogo: se tens dinheiro, és gente, se não tens dinheiro, não és ninguém.”


A Caçada capitalista

“O século XXI é o século do dinheiro, do sexo e da espingarda de dois canos, e você fala de sentimentos… Todos começaram a correr atrás do dinheiro… Eu não tive pressa de me casar, ter filhos, sempre quis fazer uma carreira, isso estava em primeiro lugar. Conheço o meu valor, o valor do meu tempo e da minha vida. E quem lhe disse que os homens procuram o amor? O ámorrr… Os homens acham que a mulher é uma presa, um troféu de guerra, uma vítima, e eles são os caçadores. Regras elaboradas ao longo de séculos. E as mulheres procuram um príncipe montado não num cavalo branco, mas num saco de ouro. Um príncipe de idade indeterminada… Pode ser um «paizinho»… E daí? É a bagalhoça que rege o mundo! Mas eu não sou uma vítima, sou eu mesma uma caçadora…”

“Vim para Moscovo há dez anos… Estava cheia de raiva e de energia, disse a mim mesma: «Nasci para ser feliz, as pessoas fracas é que sofrem, a modéstia é um adorno dos fracos.» ”

“os meus pais não queriam o capitalismo. Em qualquer variante. Queria-o eu e queriam-nos outros como eu, aqueles que não queriam continuar na gaiola. Jovens, fortes. Para nós, o capitalismo é interessante… Uma aventura, um risco…”

“Os meus pais não são «soviéticos», são uns românticos! Crianças do pré-escolar na vida normal. Eu não os compreendo, mas amo-os! Abri caminho na vida sozinha… solitária… sem facilidades. E tenho razão para gostar de mim! Sem explicadores, sem dinheiro e sem cunhas entrei para a Universidade de Moscovo. Na Faculdade de Jornalismo… No primeiro ano, um colega apaixonou-se por mim e perguntou-me: «E tu, estás apaixonada?» Ao que eu respondi: «Estou apaixonada por mim.» Consegui tudo sozinha. Eu mesma! ”

“A felicidade? O que é a felicidade? O mundo mudou… Agora, os solitários são os bem-sucedidos, as pessoas felizes, e não os fracos e os falhados. Têm tudo: dinheiro, uma carreia. A solidão é uma escolha. Eu quero fazer o meu caminho. Sou uma caçadora, não uma presa resignada. Eu é que escolho. A solidão é muito parecida com a felicidade… Isto soa como uma revelação, não é? (Silêncio.) Até nem era a si, mas a mim mesma que eu queria contar tudo isto…”

A Lavagem Cerebral

“Tínhamos aulas… Aprendíamos principalmente a amar o camarada Estaline. A primeira carta da minha vida foi a ele que a escrevi, para o Kremlin. Foi assim: quando já sabíamos escrever, distribuíram-nos folhas brancas, e ditavam-nos uma carta para o nosso guia, o mais bondoso e o mais amável. Nós amávamo-lo muito, acreditávamos que receberíamos uma resposta e que ele nos mandaria presentes. Muitos presentes! Olhávamos para o retrato dele e achávamo-lo muito bonito. O mais bonito do mundo! Até discutíamos para ver quem de nós daria mais anos da sua vida por um dia da vida do camarada Estaline. ”

“Dia da morte de Estaline… Puseram todo o orfanato em formatura e arriaram a bandeira vermelha. Todo o tempo que durou o funeral, ficámos na formatura em sentido, seis ou oito horas. Havia quem caísse desmaiado… Eu chorava… Já sabia o que era viver sem mãe. Mas como viver sem Estaline? Como viver… ”


O título em inglês é “Secondhand Time" (Um Tempo em Segunda Mão), porquê?

Svetlana: “Porque todas as ideias, as palavras, tudo é em segunda mão, como que do passado, usado. Ninguém sabe como devia ser, mas ajudam-nos, e todos usufruem daquilo que souberam em tempos, que foi vivido por alguém, uma experiência anterior. Por enquanto, infelizmente, o tempo é em segunda mão. Mas começamos a recuperar os sentidos e a sentir-nos no mundo. Ninguém quer viver para sempre nas ruínas, queremos construir alguma coisa com esses fragmentos.”


2 comentários:

  1. Me perdoe mil vezes professor Nélson, mas dizer em jeito de conclusão que "somos nós que criamos o melhor e o pior, somos nós os nossos próprios predadores", não será uma verdade extremamente óbvia, digna de La Palisse, e contudo, irrefutável?
    Sobre o fim do mito soviético, do estalinismo ou do comunismo, penso ser difícil encontrar melhor que:
    - Leonardo Padura, O homem que gostava de cães
    - Vassili Grossman, Vida e destino
    - Victor Serge, O Caso do Camarada Tulaev
    Um abraço

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    1. Joaquim, tem toda a razão. Senti isso no final, questionei-me se o deveria deixar ficar ali ou cortar. Só deixei ficar pela parte dos predadores, mas aceito totalmente a crítica :)

      Quando aos livros do Padura, tenho lido coisas boas mas ainda não em aproximei. O do Vassili já o comprei há algum tempo mas ainda não li. O do Victor Serge, confesso que desconhecia.

      Contudo chamo a atenção para o facto de serem livros anteriores ao desmorona. Dão conta do que se passava, mas o que é interessante e novo aqui, é ver como as pessoas encararam a nova realidade, o que aconteceu com o seu espírito quando esmagado pelas duas mós — comunismo por baixo, e capitalismo por cima.

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