“Rayuela” (1963) (em Portugal “O Jogo do Mundo”) é reconhecido como uma das maiores obras da literatura da América latina. É reconhecido pelo pioneirismo do uso da não-linearidade hipertextual (ligações que permitem saltar páginas e capítulos). O seu autor, Julio Cortázar, foi imortalizado graças a este livro. Contudo, a minha experiência ficou bastante aquém, diga-se que muito provavelmente por defeito de profissão — trabalho, há mais de 20 anos, o design de narrativas hipertextuais. Esperava mais. Esperava ver uma obra que por ser criada por uma mente literária, rasgasse todos os preceitos da literatura e principalmente da linearidade narrativa. Acaba por não o fazer, em nenhuma das frentes. Com um registo demasiado colado a Joyce, oferece muito pouco à literatura. A forma sustenta o nosso interesse pela novidade estrutural, mas desvendado o padrão seguido tudo começa a cair.
O problema da estrutura apresentada por Cortázar é que oferece muito pouco ao significado da leitura. Repare-se que o livro abre com uma tabela em que apresenta a possibilidade de ler o livro apenas até meio, ou então ler todo o livro, mas seguindo uma ordem de capítulos distinta daquela que foi impressa, colocando, o autor, no final de cada capítulo o número do capítulo para onde se deve saltar a seguir. Em pouco tempo, percebemos que saltamos entre duas realidades — dois lados da trajectória de Oliveira (Paris e Buenos Aires, 'aquele lado' e 'este lado') —, e que por vezes permanecemos um pouco mais numa ou noutra, com os saltos a produzirem uma variação rítmica no fluxo informacional que, em certos momentos, parece aproximar-se da experiência do jogo da macaca. Mas, no campo das decisões do leitor, nada, temos apenas a opção de continuar a ler, numa direção única, como se os capítulos tivessem sido assim impressos. O leitor só é convocado a decidir na abertura do livro, ou lê metade, ou lê tudo. Nada mais, o que vai contra a ideia que Cortázar tinha:
"A mí se me ocurrió - y sé muy bien que era una cosa difícil, realmente muy muy difícil —, intentar escribir un libro en donde el lector, en vez de leer la novela así, consecutivamente, tuviera en primer lugar diferentes opciones. Lo cual lo situaba ya casi en un pie de igualdad con el autor, porque el autor también había tomado diferentes opciones al escribir el libro. Este libro es una tentativa para ir hasta el fondo de un largo camino de negación de la realidad cotidiana y de admisión de otras posibles realidades, de otras posibles aperturas." In documentário "Cortázar" (1994) de Tristán Bauer, transcrição
No domínio literário, deixo um excerto da análise de Patricia Novillo-Corvalán (2019) que dá conta da proximidade com Joyce:
“On a larger textual level, at this critical point in Ulysses and Hopscotch both Bloom and Oliveira are deeply concerned about their relationship with their wife/mistress (Molly/Maga); the overall psychological impact of the death of an infant (Rudy/Rocamadour); an alleged infidelity (Boylan/Gregorovius); their affairs with other women (Martha/Pola); and their emotional and sexual longing for Molly and La Maga. Significantly both female heroines pursue singing careers — not very successfully — and have a history of sexual encounters with other men in their native Gibraltar and Uruguay. Both are also depicted as unsophisticated readers from a masculine viewpoint that, inevitably, enforces gender-based stereotypes."
E é o próprio modo de escrita adotado que vai ao encontro do modelo proposto por Joyce, veja-se como Cortázar dá conta do processo de escrita, o que permite criar a experiência de estar a ler o mundo presente, inventada por Joyce, e que Cortázar aqui tenta definir como um surrealismo:
“Rayuela no es de ninguna manera el libro de un escritor que planea una novela (aunque sea vagamente), se sienta ante su máquina y empieza a escribirla. No, no es eso. Rayuela es una especie de punto central sobre el cual se fueron adhiriendo, sumando, pegando, acumulando, contornos de cosas heterogéneas que respondían a mi experiencia en esa época en París, cuando empecé a ocuparme ya a fondo del libro.
Yo mismo no tenía, ni tuve nunca, una idea muy precisa de cuál era el nivel, la importancia, de esos elementos que se iban agregando. Escribía largos pasajes de Rayuela sin tener la menor idea de dónde se iban a ubicar y a qué respondían en el fondo. Fue una especie de inventar en el mismo momento de escribir, sin adelantarme nunca a lo que yo podía ver en ese momento. (...) no hubo nunca un plan, ningún plan establecido. Y entonces, el hecho de que no hubiera ningún plan produjo cosas verdaderamente aberrantes pero que para mí, en el fondo, fueron maravillosas, porque fueron un poco mi recuerdo de un mundo surrealista en el que hay azares diferentes de las leyes habituales y donde el poeta y el escritor aceptan principios que no son las principios cotidianos.(...)” (fonte)
Dada toda a proximidade com a proposta de Joyce, sabe a pouco dizer que Cortázar é o primeiro sul-americano a fazer uma obra assim. Não é de todo relevante a geografia, até porque Cortázar conhecia plenamente a obra de Joyce.
Cortázar diz-nos que o livro teve grande aceitação junto dos mais jovens, o que se entende, porque realmente os temas ali discutidos servem as crises existênciais do final da adolescência. Mas, muitas vezes dei por mim a sentir enfado, lendo historietas sobre porquês que se querem filosóficos, mas sabem a conversa de final de madrugada num qualquer café da esquina:
“La unidad, el encuentro en algo, todo eso es muy humoso, es muy vago, porque Oliveira no es filósofo (porque yo no soy un filósofo). Entonces, su metafísica es una metafísica muy simple, pero tiene una simplicidad peligrosa, una simplicidad que ha hecho que Rayuela -como libro- le haya movido el piso a dos generaciones de jóvenes. Porque no da nunca respuestas pero en cambio tiene un gran repertorio de preguntas. Esas preguntas tendientes a que uno diga: ¿pero cómo es que podemos aceptar esto?, ¿cómo es que yo sigo aceptando esto que me imponen desde atrás, desde el pasado? En el fondo, esa es la actitud de Rayuela.” (fonte)
Graças ao sucesso que teve junto dessas camadas mais jovens, Cortázar, acredita que o livro é muito mais do que a sua forma, mas não creio. Aliás, se “Ulysses” (análise VI) é essencialmente forma, o que queria mais Cortázar, se não forma? Claro que aqui ganha com a ideia dos capítulos salteados. Não existe leitor que se aproxime do livro e não se sinta retirado do seu conforto, por ter de saltar os capítulos, passear por todo o livro, e nunca ter ideia de quando está no princípio, meio ou fim.
"Yo creo que la adhesión apasionada que tuvo el libro, sobre todo entre los lectores jóvenes, y que sigue teniendo ahora, después de tantas ediciones y de tantas traducciones, no se debe solamente a lo formal. Cada vez que voy a España, por ejemplo, los lectores jóvenes que me rodean, que me encuentran, me hablan mucho de mis diversos libros, de sus preferencias. Pero Rayuela es finalmente el centro, toda conversación termina finalmente en Rayuela." (fonte)
Comparando o estruturalismo desta obra com a de "A Vida Modo de Usar" (1978) de Georges Perec (análise VI), apesar de lançado 15 anos depois, tenho de conceder que Perec faz um trabalho muito mais elaborado. Apesar de não introduzir a via hipertextual de forma tão clara, ela está presente e o leitor, se assim o desejar, pode realizar a leitura seguindo os capítulos numerados em vez de seguir a ordem proposta pela sucessão de páginas. As relações entre as diferentes histórias permitem criar um conjunto de leituras multilineares que ampliam a experiência da narrativa de um modo que Cortázar nunca se aproxima.
Tenho mas ainda não li o livro de Cortázar, mas penso que os capítulos salteados, assim como o hipertexto e as hiperligações, para além da novidade da forma, só complicam a compreensão para o cérebro humano "padrão".
ResponderEliminarÉ como aquelas normas jurídicas que remetem para outras, em outros diplomas legais e que trazem dor de cabeça ao normal cidadão e o sustento aos juristas.
Um abraço.
Sim, ou como a internet, em que vamos clicando nos links. O problema aqui é que não existe mesmo esse remeter para. Cria-se essa ideia com os saltos de capítulos, mas não temos opção.
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