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fevereiro 12, 2023

“Nós” (1921) de Evguén Zamiátin

Durante muito tempo olhei para “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” como um livro de ficção-científica, e talvez por isso centrado numa visão distópica espoletada pela tecnologia. Foi apenas ao ler mais sobre Orwell e as influências para a criação da obra que percebi que o livro era algo distinto, que era muito mais a interpretação política do seu tempo, do nacionalismo alemão e do comunismo soviético. Sabemos também hoje que esta obra só ganhou forma quando Orwell leu “Nós” (1921) de Evguén Zamiátin. “Nós” demonstrava uma enorme presciência sobre aquilo que viriam a ser os futuros 70 anos da URSS, mas ia além. Se Orwell escolheu os média, a televisão e as câmaras, Zamiátin desvelou desde logo o cerne do problema, a ciência matemática, antecipando aquilo que pode vir a ser o nosso mundo: tecnologicamente evoluído e matematicamente determinado.

"Apenas voltei a concentrar a atenção, a grande custo, quando o fono-conferencista passou ao tema principal: à nossa música, à composição matemática (a matemática é a causa, a música é o efeito) (...) Com que prazer ouvi a seguir a nossa música actual! As cristalinas gamas cromáticas que se juntavam e se separavam em séries infinitas — e os acordes sumários das fórmulas de Taylor, de Maclaurin; os lances diatónicos, com a carga quadrada do teorema de Pitágoras; as tristes melodias de movi­mento oscilatório a amortecer; os compassos vivos alternando com as pausas das linhas de Fraunhofer — a análise espectral dos planetas... Que grandeza! Que inabalável conformidade com a lógica! E que miserável é a música dos antigos — toda ela voluntariosa e sem ou­tros limites que não os das fantasias selvagens..."

fevereiro 05, 2023

Days Gone = (Uncharted + Far Cry) / The Walking Dead

É um grande jogo, desde logo evidenciado pela elevada qualidade da arte visual, da animação dos personagens e câmara, assim como do próprio design de interação suportado pelas affordances audiovisuais. A animação do protagonista, Deacon, e da sua motorizada, não são apenas bem conseguidas, são de tal modo fluídas que geram enorme flow em toda a nossa interação com o jogo, algo que vai melhorando ainda mais com o progredir do jogo por via da otimização das skills, das armas, e da própria motorizada. Por outro lado, o pior é mesmo a história, bastante mediana, ainda que aqui se deva mais a erros derivados da megalomania da direção ao optar por uma narrativa interativa em mundo aberto, de que viria a recuar a meio da produção.

fevereiro 04, 2023

AI 2041

“AI 2041” (2021) apresenta uma estrutura deliciosa. Sendo um livro de não-ficção sobre IA, usa pequenos contos de ficção para ajudar o leitor a compreender, por via de situações reais e concretas, o alcance de conceitos e tecnologias de carácter abstrato. Kai-Fu Lee é uma referência na Ásia, por ter sido presidente da Google China, mas antes disso trabalhou nos EUA para a Apple, a SGI, e a Microsoft. Na academia formou-se na Columbia, e doutorou-se na Carnegie Mellon, em 1988, com uma tese em IA. Para este livro, convidou Chen Qiufan, autor chinês, premiado e reconhecido por um estilo de ficção científica realista. Juntos criaram um livro que junta o melhor da ficção com a não-ficção. Cada um dos 10 capítulos aborda um impacto futuro da IA, sendo cada tópico primeiro ilustrado por um conto, situado em 2041, de Chen Qiufan, depois seguido por uma análise académica de Kai-Fu Lee, que dá conta da tecnologia atual e da expetativa de desenvolvimento até 2041. Deste modo, Lee e Qiufan criaram uma nova e poderosa abordagem que deveria ser vista como um modelo a seguir pela comunicação de ciência. 

janeiro 23, 2023

"Despachos" (1977) de Michael Herr, trad. Paulo Faria

"Despachos" (1977) de Michael Herr é uma das obras sobre a guerra americana no Vietname mais citadas, o que dá conta do valor deste livro enquanto documento. O jornalista Michael Herr foi cobrir a guerra em 1967, com 27 anos, tendo passado lá 3 anos. Em 1977 publicou esta obra como testemunho direto do que lá passou. O mesmo testemunho que depois foi a base dos dois filmes mais importantes sobre o conflito — "Apocalypse Now" (1979) e "Full Metal Jacket" (1987) — nos quais participou na escrita dos guiões.

janeiro 14, 2023

Humanos e Máquinas: métricas da mediania

O título “The Tyranny of Metrics” do professor Jerry Z. Muller é indissociável do título “The Tyranny of Merit” do imensamente mais conhecido professor Michael J. Sandel. Mas em defesa de Muller, o seu livro é de 2018, e o de Sandel de 2020. Mas a aproximação não se fica pelos títulos, vai ao fundo dos dois tópicos eleitos: mérito e métricas. Não as colocando lado a lado, mas antes em lados opostos, diga-se lados políticos. Porque se o “mérito” é o santo graal da esquerda, o motor da crença messiânica de que todos podemos ser tudo e fazer tudo desde que nos esforcemos. As métricas são o Santo Graal da direita, em que tudo tem de ser medido para que tudo possa ser transparente, porque só quando ajustado pela medida objetiva se pode eliminar qualquer vestígio de viés humano.

As métricas que nos transformam em máquinas

janeiro 08, 2023

Um Booker dececionante

As expectativas que tinha a propósito de "A Senda Estreita para o Norte Profundo" (2014) determinaram uma experiência de leitura pouco abonatória. Dois elementos contribuíram para essas expectativas: o prémio Booker que costumo seguir e respeitar; o relato do trabalho violentíssimo a que foram submetidos os prisioneiros da segunda grande guerra pelos japoneses na construção de uma linha de caminho de ferro na Birmânia. Se a escrita pareceu, por vezes, estar ao nível do esperado de um Booker; a história real apresentada pareceu servir ao autor apenas de cenário de fundo ao romancear de amores desencontrados.

janeiro 07, 2023

Como Não Fazer Nada

Jenny Odell é uma artista e professora de design digital na Universidade de Stanford, e o seu livro "How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy" de 2019 tornou-se um best-seller nos EUA, ou como se diz na gíria da internet, tornou-se viral. A razão prende-se essencialmente com o argumento que discute: como lidar com um mundo em alta-rodagem em que somos continuamente monitorizados e se espera que atinjamos mais e mais resultados. A discussão realiza-se num plano próximo, em que todos aqueles que trabalham no mundo dos serviços e usam redes sociais no seu dia-a-dia facilmente se reconhecerão, mas enriquece essa discussão com teorização da psicologia e fenomenologia, assim como com a sua própria experiência. Odell nasceu em Cupertino na California, a pequena cidade que alberga a sede "espacial" da Apple, considerada um dos corações de Silicon Valley, tendo crescido no meio da tecnologia procurou conciliar a mesma com os seus estudos em artes.

janeiro 01, 2023

A metáfora em Lobo Antunes

Não é bem uma novela, é mais um poema em prosa sobre as memórias de um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, um militar médico português enviado para Angola. Neste perfil encaixa o próprio autor, António Lobo Antunes, que tendo terminado a licenciatura em medicina (a especialização em psiquiatra só viria depois) foi destacado para guerra colonial em Angola, entre 1971 e 1973. Neste sentido, podemos dizer que se trata de uma obra autobiográfica, carregada de emocionalidade, transposta na forma de uma escrita profundamente poética.

dezembro 30, 2022

Máquinas de contar histórias

"Story Machines: How Computers Have Become Creative Writers" foi publicado em julho 2022, mas os seus autores, Mike Sharples e Rafael Perez, académicos na área da aprendizagem e criatividade IA, dizem-nos que o livro começou a ser preparado em 2001, por isso não se espere aqui um tratado sobre o enorme potencial aberto pelos sistemas GPT, que apesar de serem abordados representam apenas uma pequena parte da discussão.

dezembro 26, 2022

A Mente e a Lua

Daniel Bergner realiza serviço público com este livro, “The Mind and the Moon” (2022), ao dar conta do modo como a medicina lida com a doença mental no século XXI. Bergner começa por relatar o horror de um passado não muito distante, dos primeiros hospícios às lobotomias de Egas Moniz, evidenciando que se muito mudou, mudou mais ainda com a secundarização de Freud e a atribuição total de primazia ao poder da química para alterar a biologia. Podemos pensar que tudo foi sendo feito em nome da evidência científica, os problemas começam quando essa não é tão evidente como a indústria farmaceutica quer fazer crer. Os problemas acontecem quando a evidência funciona apenas para uma parte da população, enquanto na outra não vai além de placebo. Os problemas acontecem quando parecendo que funciona acaba por ditar uma qualidade de vida pior do que aquela que existia na sua ausência. Senti por vezes algum receio em continuar a leitura por, em partes, o discurso roçar a teoria da conspiração. Mas, o facto de Bergner ter vários livros publicados, escrever para algumas revistas de referência internacional, e acima de tudo estar a dar conta, em parte, de memórias vividas ao lado de um irmão que passou os últimos 40 anos a lutar com a doença, faz com que nos disponhamos a continuar a ler. Bergner questiona tudo e todos sobre os tratamentos, quase exclusivamente assentes no químico, que oferecemos à doença mental, terminando apenas com uma certeza, a de que continuamos a saber muito pouco sobre o funcionamento da mente.

dezembro 24, 2022

A Torre dos Segredos (2022)

O título original — "A History of Water" — não faz muito sentido, porque não explicando do que trata, também não aproxima o leitor do sentimento geral da obra. Ainda que se possa dizer que a obra se foca em dois viajantes da era dourada das descobertas marítimas portuguesas: Luís de Camões (1524 - 1580) e Damião de Góis (1502-1574). Mas o sentimento é claramente melhor captado pelo título português — "A Torre dos Segredos" —, que não só evoca o relato das particularidades das vidas desses dois viajantes, mas denota também a presença central da Torre do Tombo, a torre onde desde 1378 a história de Portugal foi sendo escrita.

dezembro 21, 2022

Leituras recomendadas

Depois dos melhores livros publicados de 2022, deixo os 12 melhores de outros anos, 6 de não-ficção, e 6 de ficção. Leram-se bons livros, ainda assim não sinto que tenha sido um ano em cheio, na segunda metade do ano estive demasiado sobrecarregado e foi difícil aproveitar da melhor forma algumas obras. Do que li, as 6 de ficção são obras que me marcaram, e que não esquecerei. Já as de não ficção, abriram-me novos horizontes de conhecimento, seja na história, design ou psicologia.

Ficção

1. Shuggie Bain (2020) de Douglas Stuart (Análise

2. De Noite Todo o Sangue É Negro (2018) de David Diop (Análise)

3. O Clã do Urso das Cavernas (1980) de Jean M. Auel (Análise)

4. Na Terra Somos Brevemente Magníficos (2019) de Ocean Vuong (Análise)

5. A Oeste Nada de Novo (1928) de Erich Maria Remarque (Análise)

6. Aristóteles e Alexandre (2009) de Annabel Lyon (Análise)


Não Ficção

1. Make it New: A History of Silicon Valley Design (2015) de Barry M. Katz (Análise)

2. Syllabus: Notes from an Accidental Professor (2014) de Barry Lynda (Análise)

3. Projections: A Story of Human Emotions (2021) de Karl Deisseroth (Análise)

4. The Rape of Nanking (1997) de Iris Chang (Análise)

5. An Internet in Your Head (2021) de Daniel Graham (Análise)

6. A Brief History of Equality (2021) de Thomas Piketty (Análise)


dezembro 18, 2022

"O Simpatizante" (2015)

"O Simpatizante" é o primeiro livro de Viet Thanh Nguyen, e conta-nos a história de um espião duplo durante a Guerra do Vietname que tanto atua pelo Vietname do Norte como pelos Estados Unidos. O personagem realiza estudos nos Estados Unidos, e mais tarde acaba sendo evacuado do Vietname para os EUA, onde continua a trabalhar como simpatizante do Norte do Vietname, mas não deixando de trabalhar como espião para ambos os lados da guerra. O livro foca-se no seu relato sobre os anos em que viveu dividido entre duas visões do mundo.

dezembro 11, 2022

Livros de 2022

Mais um ano, mais uma enorme quantidade de livros publicados. Muitos serão esquecidos rapidamente, juntamente com muita música, cinema e videojogos que podem até servir bons momentos de entretém, mas pouco possuem que lhes permita perdurar na memória. Dos livros de 2022 que li, escolhi 5 de não ficção e 4 de ficção, que deverão continuar relevantes por mais alguns anos.


Duas brilhantes biografias, "The Brain in Search of Itself" sobre Santiago Ramon Y Cajal, e "Pessoa" sobre Fernando Pessoa. A primeira, escrita como um romance, a segunda com uma escrita quase tão bela como a do próprio Pessoa. Dois livros de divulgação de ciência: "The Language Game", que lança uma nova hipótese sobre o modo como terá surgido a linguagem nos humanos; e "How the World Really Works", sobre o que efetivamente estamos a fazer com os recursos fósseis, e os impactos reais das alterações drásticas que andamos a discutir, nomeadamente em países em desenvolvimento. Por fim, um livro de história, "A Torre dos Segredos", com base em duas das mais importantes personalidades de Portugal, Camões e DeGóis, escrito como aventura, com algumas fragilidades na escrita, mas ainda assim muito relevante. 

Na ficção, temos três livros muito comtemporâneos: uma belíssima aventura sobre a nova profissão dos criadores de videojogos, "Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow"; um muito lúcido olhar sobre a vida académica em tempo de MeToo e cancelamentos, "Vladimir"; e uma distopia portuguesa, "Cadernos da Água", sobre os potenciais efeitos das alterações climáticas na presença de água na península ibérica. Por fim, temos o regresso de McCarthy, que por si marca o ano literário, com "O Passageiro". 

Exceptuando "Pessoa", que foi publicado primeiro em inglês, em 2021, tendo a nossa tradução chegado apenas neste verão, são tudo livros publicados em 2022 que vão valer a pena continuar a ler nos próximos anos. Entretanto, espero deixar por aqui as melhores leituras de não-ficção e ficção relativas a anos passados.

dezembro 10, 2022

Como funciona o mundo

"How the World Really Works: The Science Behind How We Got Here and Where We're Going" saiu este ano e tem sido imensamente discutido pela crítica, o que não diria dever-se, apesar de também, a Bill Gates, mas essencialmente ao longo percurso científico de Vaclav Smil (78 anos) a discutir estas matérias o que lhe confere um grau de autoridade e confiança muito elevados. No imediato, e apesar do livro se focar na questão ambiental, nomeadamente no aquecimento global, compararia este a "Factfullness" (2018) de Hans Rosling, pelo modo como desfia números e factos sobre a energia que sustenta o nosso modo de vida, desconstruindo teias de histórias que têm vindo a moldar a nossa visão do mundo.

dezembro 06, 2022

O mundo de “Control”

Joguei “Control” (2019) pela primeira vez no final do verão, na sua versão Ultimate (2021), o que me permitiu aceder à melhor renderização de todo o seu esplendor visual. É um jogo que se enquadra no género bem conhecido de ação-aventura em terceira-pessoa, com uma jogabilidade próxima de séries de jogos como "Infamous" (2011-2014) ou "Dishonored" (2012-2016). No campo da história, a influência imediata que podemos observar é do universo “X-files” (1993-2018), e em parte do mundo de “Annihilation” (2014/2018), com alguma aproximação a “Death Stranding” (2019) e também em parte “Beyond: Two Souls” (2013). Muito diferente destas influências temos duas coisas: a dificuldade e o ambiente visual. 

dezembro 01, 2022

Make It New: A History of Silicon Valley Design

Não sei como passei ao lado de "Make It New: A History of Silicon Valley Design", um livro já de 2015, mas é uma das maiores jóias sobre a História de Silicon Valley, sobre o nascimento das tecnologias multimédia, mas em particular sobre o modo como o design, e não o desenvolvimento, se tornou no centro da criação tecnológica. Li já dezenas de livros sobre esta história, mas este livro de Barry M. Katz, Professor de Design Industrial e Interação no California College of the Arts e Colaborador da IDEO, Inc., distingue-se por apresentar pela primeira vez uma perspectiva completa a partir do design. Foi, sem dúvida, uma das minhas leituras mais gratificantes de 2022.

O livro está editado pela MIT Press

novembro 28, 2022

O Passageiro (2022)

16 anos depois de “A Estrada” (2006), e agora com 89 anos, Cormac McCarthy regressa com uma "portentosa" força narrativa. No campo da história pode haver alguma desilusão porque o enredo avoluma-se, mas nunca se chega a desenrolar. Contudo para um autor que chega a esta idade no ativo, mais importante do que ter algo para dizer, será a forma de o dizer, e nesse campo Cormac impressiona. Temos uma estrutura modular que se vai afirmando por meio de pedaços soltos de exposição que aos poucos vão desdobrando o espaço e o tempo, permitindo-nos reconstruir o mundo-história. Nada disto é novo, o que é novo é a particularidade do método de exposição que é maioritariamente feito por via da conversação. Praticamente tudo o que sabemos, sabemo-lo através das infinitas conversas de Bobby Western com todos aqueles com quem se cruza. Para alguns leitores, são um excesso divagante, contudo são estas conversas o cerne do livro, sem elas não seria possível todo este fluxo narrativo a acontecer sem enredo a desvelar-se. Vamos passando de conversa para conversa, seguindo o protagonista e as suas predileções, e é nelas que a nossa atenção se foca, são elas que nos fazem virar página atrás de página, que nos fazem não só descobrir quem é Western, mas especialmente quem era a o seu pai e a sua irmã. 

novembro 19, 2022

Imersão, literatura e videojogos

"A Oeste Nada de Novo" (1928) é uma leitura obrigatória sobre a I Grande Guerra (1914-1918), é um clássico. A particularidade do livro assenta numa escrita direta, a partir de uma primeira pessoa no interior da guerra; num tom quase confessional e em jeito de memórias que  apesar da passagem pela guerra do autor não o são; ao que se junta por fim uma perspectiva imparcial sobre o conflito. Esta abordagem oferece-nos assim uma experiência extremamente imersiva, pelo modo como se relata a partir do teatro de guerra, mas sem nos guiar ou procurar conduzir a qualquer tomada de posição sobre os diferentes lados do conflito. Em nenhum momento Erich Maria Remarque dá conta do que conduziu ao conflito, não fala das razões nem motivações de qualquer lado das trincheiras, nem se queixa ou culpa quem para ali o atirou. A imersão produzida coloca-nos em plena guerra, oferecendo-nos um olhar, o mais natural e inocente possível, sobre o estado das coisas por forma a obrigar-nos a questionar o fundamento de tudo aquilo que se vive na Guerra, algo que é profundamente contaminado pela força emocional contida em vários dos episódios experienciados pelo narrador.

novembro 12, 2022

Histórias que não fazem um livro

Strout demonstra algumas competências muito interessantes, nomeadamente no contar de pequenas histórias, mas apresenta imensas fragilidades quando sai do micro-conto. Mesmo que seja capaz de a largas passadas interligar os pontos, e criar boas recompensas, mais ainda inter-livros, não chega para atenuar o que falta no todo. "O meu nome é Lucy Barton" é de 2016 e "Oh, William!" de 2021, os pequenos momentos oferecidos pelo interior psicológico da personagem, acabam por não contribuir para qualquer ideia maior, nem em cada livro, nem em ambos lidos em sucessão. Talvez não ajude o facto dos livros sere imensamente pequenos, e claro não contarem uma história, mas apenas pequenas historias. Quando lemos o primeiro livro, e partimos para o seguinte, nada muda, continuamos no exato mesmo universo, a mesma escrita, a mesma personagem, o mesmo de tudo em mais páginas. Isto faz lembrar a academia atual, que pega na sua investigação e retalha em bocados para dar mais artigos, números mais elevados na contabilidade métrica. Apesar disso, não faltam louvores ao trabalho da autora, e agora mais recente à sua proficuidade. Mas todos estes livros na verdade não o são, são antes secções de mesmos livros que a autora, por alguma razão, preferiu ir publicando à medida que os foi terminando. Diga-se que para a sua editora é muito melhor assim.