Durante muito tempo olhei para “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” como um livro de ficção-científica, e talvez por isso centrado numa visão distópica espoletada pela tecnologia. Foi apenas ao ler mais sobre Orwell e as influências para a criação da obra que percebi que o livro era algo distinto, que era muito mais a interpretação política do seu tempo, do nacionalismo alemão e do comunismo soviético. Sabemos também hoje que esta obra só ganhou forma quando Orwell leu “Nós” (1921) de Evguén Zamiátin. “Nós” demonstrava uma enorme presciência sobre aquilo que viriam a ser os futuros 70 anos da URSS, mas ia além. Se Orwell escolheu os média, a televisão e as câmaras, Zamiátin desvelou desde logo o cerne do problema, a ciência matemática, antecipando aquilo que pode vir a ser o nosso mundo: tecnologicamente evoluído e matematicamente determinado.
"Apenas voltei a concentrar a atenção, a grande custo, quando o fono-conferencista passou ao tema principal: à nossa música, à composição matemática (a matemática é a causa, a música é o efeito) (...) Com que prazer ouvi a seguir a nossa música actual! As cristalinas gamas cromáticas que se juntavam e se separavam em séries infinitas — e os acordes sumários das fórmulas de Taylor, de Maclaurin; os lances diatónicos, com a carga quadrada do teorema de Pitágoras; as tristes melodias de movimento oscilatório a amortecer; os compassos vivos alternando com as pausas das linhas de Fraunhofer — a análise espectral dos planetas... Que grandeza! Que inabalável conformidade com a lógica! E que miserável é a música dos antigos — toda ela voluntariosa e sem outros limites que não os das fantasias selvagens..."
Zamiátin não viveu apenas a Revolução Comunista, ele contribuiu diretamente para que a Revolução de 1917 acontecesse. Enquanto Bolchevique crente nos valores dessa revolução foi espancado, preso e exilado. Mas bastaram 2 ou 3 anos para compreender que o caminho que a revolução levava era totalmente contraproducente. O seu livro saiu em 1921, e apesar de passado num futuro distante, carregado de metáforas que o distanciavam da realidade imediata, foi imediatamente censurado, tendo sido o primeiro livro a entrar na lista de livros banidos pela URSS, onde figurou até 1988. Zamiátin, ele próprio foi colocado na lista negra do Estado, tendo de fugir para a França, onde morreria em 1937 na miséria.
Em termos críticos, Zamiátin ataca não só a lógica científico-matemática de governação mas claro a necessidade de Transparência, usando para o efeito a ideia de um mundo feito de paredes de vidro, onde tudo e todos se podem ver a todo o momento. Mais uma vez, mais fundo que Orwell que usa as câmaras e os ecrãs, permitindo assim muitas zonas de sombra. Em “Nós”, só os momentos, marcados por um algoritmo, para o coito tinham direito a cortinas. Em tudo o resto se vivia na transparência, pois só ela permite que os algoritmos funcionem na plenitude, garantindo a nossa felicidade.
"O resto do tempo, no meio das nossas paredes transparentes, como que tecidas do ar cintilante, vivemos sempre à vista, banhados permanentemente em luz. Não temos nada a esconder uns dos outros. Além do mais, isto facilita o trabalho duro e sublime dos Guardiães. De outro modo, podia acontecer sabe-se lá o quê. É possível que tenham sido precisamente as estranhas habitações não transparentes dos antigos que geraram aquela sua miserável psicologia celular. «A minha (sic!) casa é a minha fortaleza» — como fora possível uma tal ideia!"
Zamiátin satiriza tudo isto, fazendo comparativos entre um suposto mundo do passado e o atual na narrativa, colocando a liberdade ao nível da selvajaria, por ausência de lógica. Ao ler Zamiátin torna-se inevitável recordar "O Que Fazer?" (1863) de Tchernichevski (análise VI), o livro amado como bíblia por Lénine, seguido como fonte de inspiração para felicidade societal. Não sei se Zamiátin ataca Tchernichevski, se ataca apenas os idealistas da Revolução, mas não deixa de nos impressionar que alguém possa acreditar num ideal de uma sociedade matematizada. E no entanto, com toda a elevação aos píncaros que vamos fazendo das tecnologias de Machine Learning, pensando em incluía-las em todo o lado, dos tribunais à educação, da saúde à polícia, não será isso mesmo que estamos mais uma vez a tentar fazer?
"Tive oportunidade de ler e ouvir muitas histórias inverosímeis sobre os tempos em que as pessoas viviam ainda em liberdade, ou seja, num estado desorganizado e selvagem. Mas o que sempre me pareceu mais incrível foi, precisamente, o seguinte: como era possível o poder estatal daqueles tempos, por mais embrionário que fosse, admitir que as pessoas vivessem sem qualquer espécie de Tábua da Lei como a nossa, sem passeios obrigatórios, sem a regulamentação exacta das horas das refeições, podendo mesmo deitar-se e levantar-se quando lhes apetecesse?" (...) "Também não será uma absurdez que o Estado (e atrevia-se a autodenominar-se Estado!) pudesse deixar sem qualquer controlo a vida sexual? Era como cada um quisesse... quando e quanto quisesse..."
Sobre a escrita. Valeu-me a nova tradução, diretamente do russo, pelos irmãos Guerra, editado pela Relógio d’Água, já que a tradução que tínhamos pela Antígona era uma tradução em segunda mão do inglês. Li partes de ambas, porque tenho a da Antigona, enquanto a da RdA só me foi emprestada depois de começar a ler. São imensamente distintas. Se já é difícil ler o mundo intrincado — carregado de metáforas e segundos sentidos — de Zamiátin direto do russo, a versão do inglês perde-se completamente. Em múltiplos momentos sente-se Zamiátin a dosear, a reescrever, a reconfigurar o que está a dizer para que não seja visto como crítica direta, mas antes possa ser entendido apenas nas entrelinhas. Por isso, não se espere uma leitura direta, é preciso contextualizar o autor, e principalmente a data em que foi escrito, para que o mundo da história ganhe os sentidos que merece.
No final, apenas dizer que “Nós” precede todas as nossas grandes distopias ficcionais: Fritz Lang e Thea von Harbou ("Metropolis", 1927, nova versão extendida em 4K ); Aldous Huxley ("Admirável Mundo Novo", 1932), George Orwell ("Mil Novecentos e Oitenta e Quatro", 1948) e Ray Bradbury ("Fahrenheit 451", 1953). Pode-se facilmente dizer que Zamiátin foi o pai do género, ainda que se tenha de admitir que foi algo natural para si uma vez que o viveu.
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