janeiro 01, 2023

A metáfora em Lobo Antunes

Não é bem uma novela, é mais um poema em prosa sobre as memórias de um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, um militar médico português enviado para Angola. Neste perfil encaixa o próprio autor, António Lobo Antunes, que tendo terminado a licenciatura em medicina (a especialização em psiquiatra só viria depois) foi destacado para guerra colonial em Angola, entre 1971 e 1973. Neste sentido, podemos dizer que se trata de uma obra autobiográfica, carregada de emocionalidade, transposta na forma de uma escrita profundamente poética.

Mas dizer que é poético, não pode ser o mesmo que dizer que está bem escrito, pelo menos enquanto romance. O livro funciona a partir de um recontar de memórias a uma segunda-pessoa, já em Lisboa, num tom profusamente ácido, satírico-crítico. E assim, se juntarmos a crítica com a poesia temos desde logo uma obra incontornável da literatura portuguesa. Os problemas surgem quando desconstruímos a estrutura e tentamos olhar para os alicerces que suportam o discurso.

O livro é oferecido em dois distintos registos: prosa límpida, elaborada, fluída e veloz; e metáforas dentro de metáfores ou símiles. Amiúde, ambos os registos vão chocando, com a prosa a ser parada pelas metáforas que roubam a nossa atenção, desfocando o interesse do que se está relatar em busca da interpretação correta. Paramos para interpretar as metáforas porque estas não têm qualquer relação com aquilo que se conta no momento, são devaneios na forma de imagens mentais, fruto da imaginação do autor a partir de experiências passadas. 

PROSA: exemplo da fluidez e beleza

"Se você soubesse o que é acordar com vontade de urinar a meio da noite numa noite sem lua, vir cá fora mijar e nada existir em torno, nenhuma luz, nenhuma caserna, nenhum vulto, só o ruído do seu chichi invisível e as estrelas congeladas na meia laranja do céu, afastadas demais, pequenas demais, inacessíveis demais, prestes a desaparecer porque a manhã surge de repente e é dia adulto, acordar a meio da noite e sentir na quietude e no silêncio, percebe, o sono inumerável de África, e nós ali de pernas afastadas, em camisa e cuecas, minúsculos, vulneráveis, ridículos, estranhos, sem passado nem futuro, a flutuar na estreiteza assustada do presente, coçando a flor do congo dos testículos."

METÁFORAS / SÍMILES: os excessos

"Há qualquer coisa, sabe como é, de galeão espanhol submerso nesta sala, povoado dos cadáveres à deriva da tripulação que uma claridade sublunar diagonalmente ilumina"

"cadáveres que flutuam sem aderir às cadeiras, entre duas águas, a ondularem os braços sem ossos num vagar de limos"

"roupa estranha pelo chão, um soutien preto que se pendura de uma cadeira à laia de um morcego que aguarda a chegada do crepúsculo na sua trave de sótão."

"é inútil esperar que os telhados empalideçam, uma lividez gelada aclare tremulamente os estores, pequenos cachos de criaturas transidas, brutalmente arrancadas ao útero do sono"

"estendido na cama na sesta do almoço, a sentir como um feto o peso do esparguete na barriga."

É inevitável não ver aqui uma fragilidade descritiva. Na ausência de palavras, evocam-se imagens, mas imagens que fazem sentido pleno e direto no mundo particular do autor. Para o leitor, representam não só o esforço de as tentar visualizar como ainda de lhes dar sentido no seio do que se está a contar. Isto faz lembrar um certo tipo de cinema europeu dessa época, do qual o Cinema Português demorou a desligar-se, e em que na incapacidade para traduzir visualmente o que se quer dizer, criavam-se símbolos que supostamente estariam impregnados de significados, mas esses apenas falavam aos seus autores. 

Claro que num trabalho de análise literária muitas destas metáforas podem ser interessantíssimas:

"às duas da manhã, quando os corpos se principiam a deslocar como limpa-pára-brisas, o bar é um Titanic que naufraga e as bocas caladas entoam hinos sem som, abrindo-se e fechando-se à laia dos beiços tumefactos dos peixes?"

Contudo, pedir ao leitor para visualizar esta cena cinematográfica é não só exigente, mas sem sentido, porque apenas a releitura permite compreender o que se está a encenar, já que são convocadas nada menos que 4 "imagens" distintas — pára-brisas, Titanic, hinos, peixes. Pede-se ao leitor que sintetize tudo isto mentalmente para chegar a uma simples cena de um bar decadente numa qualquer madrugada citadina. Por outro lado, a metáfora perde-se porque especifica em excesso aquilo que se quer geral, já que os bares da madrugada cada um conhece os seus, e poder visualizar o seu mundo no mundo do autor é aquilo que de mais atrativo, e poderoso, tem a literatura. É isso que a distingue do cinema que nos força a ver apenas uma mesma imagem. 

Temos naturalmente de admirar quem assim escreve, mas não temos também de nos admirar quando a sua obra é menos reconhecida, não só por cá, mas também internacionalmente.

Lido em setembro 2022.

2 comentários:

  1. Olá Nelson. Não resisto a reproduzir um texto de Joana Emídio Marques publicado no Observador de 28 Jan 2016 sobre os 100 anos do nascimento de Vergílio Ferreira:

    "... Mas sobretudo foi um homem sempre posicionado contra o sistema: viveu mal com o antigo regime, viveu mal com os neo-realistas e com o comunismo, viveu mal com o regabofe revolucionário, viveu mal com as perversidades do capitalismo. O preço que pagou foi um isolamento e uma falta de reconhecimento público que ele estoicamente aguentou mas que o fazia sofrer duramente.
    ... Nos anos 80, António Lobo Antunes, jovem escritor à procura do seu espaço no meio literário que considerava anacrónico, chamava-lhe o “Sartre de Fontanelas”. No entanto, nunca Vergílio Ferreira beneficiou tanto do sistema literário português, dos seus meandros de amiguismos, cunhas, holofotes, viagens, festivais, quanto Lobo Antunes, a quem ele chamava o “bobo”Antunes. Curiosamente, as ultimas aparições mediáticas antuninas, as suas boutades adolescentes, apenas vêm dar razão a Vergílio Ferreira. Mais: mostram que o verdadeiro radicalismo vem de dentro, está nas acções e não no facto de se dizerem uns palavrões nos jornais."

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    1. Muito obrigado Joaquim. Não conhecia as tricas entre VF e ALA. É impressionante o modo como ALA rosna contra tudo e todos. Mas existem outros escritores assim, que escreveram grandes coisas por estarem tão de mal com a vida. Não gosto, e evito, tanto que deixei de ler as entrevistas de ALA.

      Entretanto fui ler mais sobre a jornalista que escreveu, e vi que segue também um pouco nesta linha de criticar e atacar muito do que mexe. Deverá ter as suas razões, mas levanta dúvidas sobre a objetividade do que escreve.

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