fevereiro 04, 2023

AI 2041

“AI 2041” (2021) apresenta uma estrutura deliciosa. Sendo um livro de não-ficção sobre IA, usa pequenos contos de ficção para ajudar o leitor a compreender, por via de situações reais e concretas, o alcance de conceitos e tecnologias de carácter abstrato. Kai-Fu Lee é uma referência na Ásia, por ter sido presidente da Google China, mas antes disso trabalhou nos EUA para a Apple, a SGI, e a Microsoft. Na academia formou-se na Columbia, e doutorou-se na Carnegie Mellon, em 1988, com uma tese em IA. Para este livro, convidou Chen Qiufan, autor chinês, premiado e reconhecido por um estilo de ficção científica realista. Juntos criaram um livro que junta o melhor da ficção com a não-ficção. Cada um dos 10 capítulos aborda um impacto futuro da IA, sendo cada tópico primeiro ilustrado por um conto, situado em 2041, de Chen Qiufan, depois seguido por uma análise académica de Kai-Fu Lee, que dá conta da tecnologia atual e da expetativa de desenvolvimento até 2041. Deste modo, Lee e Qiufan criaram uma nova e poderosa abordagem que deveria ser vista como um modelo a seguir pela comunicação de ciência. 

Começo por dizer que depois de 2022 é muito mais fácil acreditar nos múltiplos cenários apresentados para 2041. Depois do ChatGPT, do Dall-E 2 ou do Copilot, não restam muitas dúvidas que a IA detém já um enorme poder em múltiplos domínios que até aqui estavam reservados aos humanos, da resolução de problemas à criatividade. Ainda assim, quero acreditar, porque sei que o impacto efetivo de uma tecnologia não se mede apenas pelo seu potencial de ampliação de capacidade e velocidade, que Kai-Fu Lee e Chen Qiufan são excessivamente otimistas. Não quanto aos impactos na sociedade, por aí são bastante fatídicos antes de se tornarem utópicos, digo-o mais pelas expectativas que depositam nesse potencial de crescimento das competências da IA.

O modo como as histórias ilustram e as análises abordam domínios humanos como Privacidade e Educação, mas acima de tudo o Comportamento Humano, do meu ponto de vista, deixa imenso a desejar, denotando uma clara ausência de compreensão da complexidade humana. Nada que nos surpreenda, se tivermos em conta tudo aquilo que tem vindo a ser a trajetória de muitos dos visionários das grandes tecnológicas. Por outro lado, e tendo em conta que os autores vivem na China, não é fácil interpretar se muito do que dizem não é baseado no mundo de ilusão em que também vivem criado pelo Comunismo chinês. Aliás, por vários momentos, na tentativa de interpretar o que estava a ser dito, de tão incrível, chegava a pensar que eram ideias debitadas apenas para agradar ao aparelho de Estado, algo que se calhar não é assim tão tonto. Claro que não ajudou muito estar a ler simultaneamente “Nós” (1924) de Evgueni Zamiatine, que dá conta da distopia de que são feitos estes governos comunistas. Do modo como criam ilusões e vendem ao resto do povo, para que estes continuem a acreditar que o que sentem de mal é que é uma ilusão. Repare-se como Lee fala do RGPD europeu como um dos sistemas mais avançados de proteção de dados, mas não emite qualquer opinião sobre gigante elefante na sala que é toda a vigilância do Estado chinês por meio do sistema de créditos sociais atribuídos aos seus cidadãos

Este mundo de ilusão assume graus graves de ingenuidade nos últimos dois capítulos, com o autor a apresentar a AI como aquela que nos vai salvar dos nossos pecados mortais, da ganância à inveja. Podemos mesmo falar de contradições. Por exemplo, Lee defende que aquilo que nos diferenciará sempre das máquinas é a nossa compaixão e humanidade. Contudo, ao mesmo tempo acredita numa substituição das amizades humanas das crianças por amigos inteligentes virtuais, supostamente capazes de assistir as crianças em todas as suas necessidades! Ou ainda que no mundo da plenitude, criado pela IA, o fim da escassez levará ao fim da ganância, como se  os bilionários de hoje, que tudo têm, tivessem alguma vez deixado de ser gananciosos.

Olhando por debaixo destas crenças, o mais impactante é denotado pela incapacidade de compreender o modo como funciona o comportamento humano. Aconselharia a leitura de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) de Robert M. Sapolsky. De certo modo, esta visão não difere daquelas que olham para os média como causadores de problems ou de benfícios, não compreendendo a enorme complexidade de variáveis que impactam o comportamento humano. Não basta controlar um, ou mesmo conjuntos de elementos para transformar comportamentos humanos. Do mesmo modo, não basta a AI ter acesso a um conjunto de dados para a partir dos mesmos conseguir realizar leituras fidedignas da realidade, menos ainda chegarem a poder prever com certeza qualquer futuro. Ao longo do livro, sente-se um pouco esse modo de equacionar o futuro. A ideia de que depois de tudo no mundo ter sido digitalizado, quantificado, a AI poderá tomar conta do funcionamento de todo o planeta, gerindo tudo melhor do que nós. Só faltou dizer, tornando-nos dispensáveis.

No meio de tudo isto, não quero deixar de recomendar os contos: The Golden Elephant; Contactless Love; The Job Savior. São boas histórias que tocam em aspetos complexos de hoje, e em tecnologias atuais que continuarão a ser desenvolvidas no futuro, criando impactos cada vez mais complexos. Estas mesmas histórias acabam por evidenciar o modo como os autores reconhecem os videojogos como fundamentais para o futuro da humanidade, o que sendo interessante não deixa de ser preocupante. Assim, e por múltiplos problemas que possamos apontar ao livro, tenho de defender que este é uma fonte imensamente rica em especulação à volta da IA, capaz de nos lançar em rotas de questionamento bastante intensas.

Por último, não quero deixar de apontar um ponto imensamente positivo, o multiculturalismo das histórias apresentadas no livro, que vão da China ao Brasil, passando pela Índia, Japão, Sri Lanka, Nigeria, Qatar, Austrália, e claro EUA e Europa. É algo que estamos pouco habituados a ver em obras europeias ou americanas, que se limitam a situar o universo no nosso umbigo. Claro que podemos aqui ler, mais uma vez, uma premissa emanada da ideologia do governo Chinês, que busca por todos os meios diminuir o alcance da supremacia americana. 

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