abril 25, 2023

Humanamente Possível (2023)

Sarah Bakewell é reconhecida por dois belíssimos livros, um sobre Montaigne (2010) e outro sobre a corrente do Existencialismo (2016), neste seu último livro — "Humanly Possible: Seven Hundred Years of Humanist Freethinking, Inquiry, and Hope" (2023) — foi à procura da definição de Humanismo. Partindo do estilo que a caracteriza — a fusão fluída de biografia, arte, história e filosofia — atravessa 700 anos de ideias para dar conta das origens, evolução e relevância do Humanismo, um termo apenas cunhado no século XIX, e para o qual ainda hoje temos dificuldade em encontrar uma definição que sirva a todos. Para o efeito, convoca as vidas e ideias de Petrarca, Boccaccio, Da Vinci, Erasmus, Montaigne, Voltaire, Spinoza, David Hume, Thomas Paine, Frederick Douglass, Robert G. Ingersoll, John Stuart Mill, Harriet Taylor, Bertrand Russell, Zora Neale Hurston, Thomas Mann e Vasily Grossman.

Se a leitura do seu livro sobre o existencialismo me ajudou a aprofundar as ideias de Sartre e Beauvoir no cruzamento com a fenomenologia de Ponti e Heidegger, acabando por de certo modo afastar-me dessas correntes, mais atrativas à superfície do que aquilo que têm verdadeiramente para oferecer. Adquiri este seu novo livro de imediato, e sem perceber completamente ao que vinha, pois queria apenas continuar a ler Bakewell que não criando novas formas de pensamento, as discute e aprofunda com um prazer contagiante. Ao entrar no livro, tendo percebido melhor ao que vinha, senti-me verdadeiramente em casa. 

O humanismo, por muito difuso que possa ser a sua definição, enquadra o âmbito daquilo com que me defino, por que me movo, e que me tem ajudado a ultrapassar as maiores indefinições e bloqueios do que sou. Começou pela arte — a banda desenhada, o cinema e os videojogos — a que se juntou depois a ciência com Carl Sagan e Richard Dawkins, e a filosofia por via de Nietzsche e Schopenhauer. Houve desde cedo uma necessidade vital de compreender, de descobrir, de perceber porque fazemos o que fazemos, o que faz de nós humanos, baseado na experiência, observação e acima de tudo pela leitura dos que vieram antes e se interrogaram sobre o mesmo. Daí que me interessem bastante as civilizações históricas, mas apenas a partir dos gregos, momento em que deixamos de invocar divindades para explicar aquilo que somos. Por outro lado, tendo a atender apenas à arte que questiona o humano, no cinema, nos jogos, assim como na literatura. Ser-se humano é pensar, questionar, indagar, querer descobrir o nosso propósito, mesmo sabendo que este muito provavelmente não existe.

Bakewell abre a introdução com uma discussão sobre a definição de humanismo, dando conta da ausência de uma exposição que abarque toda a sua amplitude, definindo assim 3 grandes áreas:

  1. Como estudos humanos — "traduziam e editavam livros, ensinavam os alunos, correspondiam-se com os seus amigos sábios, debatiam interpretações, faziam progredir a vida intelectual". De certo modo, foi a base que permitiu a saída da Idade Média, a criação das universidades, a abertura a diferentes formas de pensar e assim a chegada à Renascença.
  2. Como filosofia — "rejeita o sobrenaturalismo, considera o homem como um objecto natural e afirma a dignidade e o valor essenciais do homem e a sua capacidade de se auto-realizar através do uso da razão e do método científico". É a base do humanismo moderno, que não aceita dogmas, e baseia a moral na razão e empatia. 
  3. Como aplicação prática — diz respeito à aplicação dos princípios da filosofia humanista, por religiosos e não-religiosos, a áreas como as artes, a medicina, a educação, a política, o direito, consistindo na colocação do humano no centro das preocupações do todo. 

Assim, e em síntese, "Humanistas religiosos, não-religiosos, filosóficos, práticos ou professores de humanidades - o que é que todos estes têm em comum, se é que têm alguma coisa? A resposta está mesmo no nome: todos eles olham para a dimensão humana da vida."

Apesar desta divisão, Bakewell estruturou o seu livro através da cronologia dos autores, ainda que faça leituras por vezes cruzadas no tempo. Mas existe uma clara tentativa de ir à génese, e tentar perceber a evolução das ideias no tempo, o modo como os autores se foram influenciando e contribuindo para a elevação da ideia de humanismo.

De todos, considero que o marco usado para iniciar o seu estudo é o mais particular, porque inevitavelmente tenderíamos a pensar nos gregos — Sócrates ou Aristóteles — mas não, Bakewell situa a génese do humanismo no final da idade média, em Petrarca e Bocaccio. Dois criadores, mais artistas do que filósofos, o que nos questiona desde logo, e porque não Dante? O que se torna fácil responder, pelo facto de Dante ter vivido aprisionado nos dogmas religiosos, tendo mesmo contribuído para a sua promoção. Petrarca e Bocaccio, deixaram tudo isso para trás, com Bakewell a dizer:

"Francesco Petrarca and Giovanni Boccaccio. They more or less invented the way of life that would be, for the next two centuries, the humanist one—not that they used this label of themselves. Only later did people regularly use the word umanisti; but Petrarch and Boccaccio put together the profile, so it seems reasonable to call them by that name. To get there, each of them began with a similar step: rebelling against the means of living that their fathers had wanted for them. In Petrarch’s case it was the law; in Boccaccio’s, a choice between mercantile business or the church. Separately, they both chose a new path instead: the literary life."

Apesar de Petrarca ser o mais frágil, foi ele quem manteve Boccaccio no caminho quando este quase abandonou tudo: "Se uma pessoa ama a literatura e é boa nisso, escreveu Petrarca, como é que pode ser considerado moralmente correcto abandoná-la? A ignorância não é o caminho para a virtude." 

Apesar de quase impossível de definir, ao longo do livro vão-se tornando claras algumas das características essenciais deste movimento:

  • A busca pela excelência intelectual e artística
  • A rebelião contra o status-quo
  • Sprezzatura (esconder conscientemente o esforço do trabalho)
  • Virtude moral
  • A cortesia

Estas ideias parecem apontar para um ideal do Humano, e quando assim é existe sempre uma certa necessidade de medir, quantificar, dimensionar esse ideial, e de certo modo isso foi procurado na Renascença, nomeadamente com o Homem de Vitruvio consagrado pelo desenho de Da Vinci. Contudo, o trabalho de desconstrução dessa obra acaba por nos fazer chegar mais perto do entendimento do porquê da complexidade em definir o Humanismo.

"Vitruvian Man was a perfectly proportioned, steady-gazing, well-formed male figure, whose origin is purely mathematical. He illustrates the ratios of distance that were supposed to exist between parts of the human body: the chin to the roots of the hair, the wrist to the tip of the middle finger, the chest to the crown of the head, and so on."

"Vitruvius gave the method for deriving the data. If a man lies on his back with hands and feet spread, and you draw a circle with his navel as the center, the circumference will touch his fingers and toes. You can also create a square based on the span of his arms and the length of his body, when he brings his feet together." 

(...) 

"Artists of the fifteenth and sixteenth centuries did their best to make this Vitruvian ideal come true."

(...) 

"Most celebrated was the drawing made around 1490 by Leonardo da Vinci, showing a man in the two positions simultaneously, along with his measures in delicate box shapes. The man is positioned inside a circle centering on his navel, as well as a square. His expression is frowning but serene; he has a fine head of hair, and turns one foot sideways to show how its dimensions fit with the whole."

(...)

"In fact, what distinguishes the Leonardo image from other Vitruvian ones is that it does not submit to symmetrical measurements; its shapes are not concentric. Leonardo achieved the figure’s visual beauty and plausibility by displacing the square downward. The circle centers on the navel, but the square centers somewhere around the base of the man’s penis. Also, the upper tips of the square poke through the circle’s radius. The proportions had to be tweaked, because even “ideal” humans are not a precise set of boxes and circles. Many correspondences do exist: the finger-to-finger span of a broad-shouldered man is likely to be more or less the same as his height. But without adjustment, a real Vitruvian man would look mighty weird, as is clear from some other examples, such as the one in a 1521 Italian translation of Vitruvius illustrated by Cesare Cesariano."

(...)

"The message here is that real human beings, even those who match the dominant template of muscular masculinity, are characterized by something less than perfect harmony. They are subtly off-center. An ideal, harmonious human cannot be found any more than an ideal, harmonious city can (or even a harmonious chameleon)."

Ou seja, a perfeição não existe, o humano varia em todas as suas dimensões, e é exatamente dessa variabilidade que emana a sua atração e relevância. Por isso mesmo, necessitamos da tolerância, da compreensão do outro, e alguns dos episódios que se repetem nesta história de humanistas tem que ver com a escrita de manuscritos que autores decidiram não publicar durante muito tempo, ou mesmo em vida, por questões de gentileza para com os familiares ou da sociedade, mas também da sprezzatura, de não considerar que tinham valor suficiente, e apesar de Bakewell não falar deles, não consegui deixar de pensar em Newton e Pessoa, dois exemplos máximos desta condição. 

Bakewell tenta, a meio do livro, uma definição mais robusta, que divide em 4 grandes pontos:

  1. Universalidade: "estamos todos unidos na nossa humanidade, de modo que 'nada do que é humano é estranho'"
  2. Diversidade: "somos todos humanos, mas também vivemos a vida de forma diferente consoante a cultura, a situação política e outros factores - e essas diferenças devem ser respeitadas e celebradas".
  3. Pensamento crítico: "nada sobre a vida humana deve ser tomado como evidente ou aceite com base na autoridade e na tradição. O que É pode NÃO estar correcto e deve ser questionado".
  4. Ligação moral: "a crença geral de que as nossas vidas morais, que são centrais para a nossa humanidade, são melhor servidas se procurarmos formas de nos ligarmos e comunicarmos entre nós".

E acaba a citar, por duas vezes, uma inicial e outra a fechar o livro, Robert Ingersoll sobre aquilo que considera como a essência do Humanismo:

"Happiness is the only good.

The time to be happy is now.

The place to be happy is here.

The way to be happy is to make others so."

E por fim, cita a Amsterdam Declaration, do Humanismo Moderno, que acabei transcrevendo integralmente para aqui.

Sem comentários:

Enviar um comentário