Os livros de Iris Murdoch não se podem ler apenas enquanto histórias, a sua faceta filosófica está sempre presente no subtexto requerendo que nos debrucemos sobre as motivações do tema, buscando chegar ao que terá conduzido o pensar no engendrar do mundo ficcional e das ações dos personagens. No caso de “O Príncipe Negro” (1973), temos à superfície uma tragédia, um escritor de 58 anos divorciado que se apaixona pela filha de 20 anos de um casal que é constituído pelos seus dois melhores amigos de sempre, e acaba a desencadear reações trágicas e irreversíveis. Se a intriga mantém o nosso envolvimento até ao final e com boa intensidade emocional, aí chegados parece tudo saber apenas a “mais uma tragédia de amores”. Mas se refletirmos no sentido ético da filosofia de Murdoch (Duringer, 2022), podemos ver mais, podemos ver como todo o texto é um labor de dissecação do comportamento humano, numa tentativa de oferecer à compreensão aquilo que o nosso preconceito tende a impedir-nos de abarcar, sem recorrer a embelezamento nem persuasão. O personagem é apresentado na sua plenitude, com toda a carga negativa, reforçando mesmo a nosso recusa, contudo essa apresentação obriga-nos a repensar, a procurar compreender.
Se aceito que o livro dá conta desse labor, levanto algumas reservas, ainda que perceba que estou a ir contra exatamente o que motiva o trabalho de Murdoch. Mas não posso deixar de apontar um problema subjacente ao cenário imaginado, que ao contrário de “Lolita" (1955) de Nabokov, não pretende apresentar uma crise momentânea, mas algo do tipo “eterno”. Ora, aquilo que Murdoch aprofunda e descama pela boca do escritor ficcional Bradley Pearson não é amor, mas apenas paixão, uma variável emocional que sabemos perfeitamente ser efémera. Acredita-se em tudo o que passa pela cabeça de Pearson, mas não se acredita que “aquilo” possa ser permanente.
Aliás, Murdoch trabalha essa mesma impermanência na personagem, mas ao contrário, quando Pearson, apresentado como escritor de renome por ser difícil e produzir poucos livros, passa de detestar os livros do seu grande amigo, por serem comerciais, para os encomendar a todos e procurar lê-los para estudar toda a obra na sua plenitude. Ou seja, Murdoch apresenta uma transformação operada pela intensidade da paixão, mas depois parece recusar a ideia de que essa transformação possa ser reversível. Percebe-se que do ponto de vista de Murdoch este episódio é mais uma tentativa de trabalhar a necessidade de aprofundar a compreensão do outro, seja em que dimensão for, e em especial libertando-nos do preconceito, neste caso artístico.
Parece-me que a tragédia acaba por perder algum do seu impacto, contudo Murdoch salva tudo novamente, quando no final nos apresenta epílogos escritos pelos outros personagens, que parecendo um recurso de forma menor acaba abrindo uma enorme janela para compreensão do mundo de Pearson, permitindo-nos ver as camadas que este optou por nos esconder e desse modo tornando perfeitamente cristalinos os objetivos de Murdoch com esta ficcionalização.
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