Dei por mim quase a chorar e a ter de me afastar da televisão quando esta semana estava sentado ao lado do meu pai que via um documentário no National Geographic sobre vida selvagem. Primeiro, foi um crocodilo que abocanhou o traseiro de uma cria de bufalo e ficou ali a prende-la durante uns agoniantes 10 minutos, enquanto a mãe da cria se limitava a lamber-lhe o focinho, até que o crocodilo a puxou para baixo e a afogou. Depois, veio um macho zebra que começou a atacar violentamente uma cria zebra porque esta não lhe pertencia, segundo o narrador para evitar que essa cria se revoltasse contra ele mais tarde, tendo a mãe da cria tudo feito para evitar que o macho se aproximasse, mas acabando por não conseguir evitar o pior.
Refletindo sobre isto, dei por mim a questionar o mundo seguro em que vivemos. Em que exigimos o direito de afastar tudo aquilo de que não gostamos. E relembrei a entrevista que lia esta semana, na World Literature, de Azar Nafisi, uma escritora iraniana a viver nos EUA, a propósito do seu novo livro "Read Dangerously: The Subversive Power of Literature in Troubled Times", em que diz:
"Well, this book is partly a response to the trend I had noticed, especially in the US, where we use books as comfort food. We read them not in order to be disturbed or find something new, but we read them in order for them to confirm what we already know, at times to confirm our prejudices: “Why don’t they speak what I want them to?” So, there’s no challenge—we’re uncomfortable with challenge. We want to eliminate rather than create an exchange. And so, for me, reading dangerously means that we take that risk to read in order to be disturbed. As James Baldwin says, artists are here to disturb the peace. Writers are not here to warm the cockles of your heart.
For me, the best example of a good reader or a reader who takes risks is Alice in Wonderland. Out of millions of little girls, there’s this one little girl who is bored with the routine of her life, and she’s after something different (...) She risks going into the world of the white rabbit. And when she jumps into that hole, she doesn’t say, Am I going to survive this? What’s going to happen to me next? And her reward, of course, is the world—everything (...)
The last thing that I want to say about Alice, which I think is really important, is that like all good stories, it challenges and questions, not just the world outside but the reader as well. Alice has a lot of questions from these creatures, but every time she asks them about who they are or why are they like this, they ask the question of her, Who are you? Why do you look like this? You look strange. She tells the caterpillar, Who are you? And the caterpillar throws the question back to her, saying, Who are you? So, that is my concept of risking when we read. Writers take a risk when they write; the reader should also take a risk when they read."
Paradoxalmente, tenho dúvidas que estas imagens da National Geographic me tivessem afetado desta forma quando eu tinha 10 anos. Nessa altura vivia numa pequena aldeia em que era comum as pessoas juntarem-se para matar porcos, sem qualquer anestesia, e as crianças assistiam a tudo como se de algo natural se tratasse. Podemos dizer que era a sobrevivência, mas aqui também se pegavam em ninhadas de cães ou gatos, imediatamente após nascerem, metiam-se num saco e enterravam-se num buraco num qualquer pinhal. Isto são coisas que não esqueci, mas existem outras tão ou mais tenebrosas. As pessoas que o faziam nessa altura quando hoje questionadas não sentem orgulho de o ter feito, sentem vergonha e preferem não falar.
Mas não deixa de ser algo que temos de nos questionar enquanto espécie. Olhando para o meu caso de não aguentar o que vejo na TV ou das pessoas que sentem remorsos pelo que fizeram no passado contra os animais, parece que nos tornámos imensamente mais empáticos. Que passámos a olhar para os animais como parte da espécie humana. Contudo, isso acontece apenas à superfície. Repare-se que aquilo que me afasta da televisão é o facto de antropomorfizar a relação mãe-cria. E aquilo que cria remorso é exatamente esse sentimento de atribuição de emoção aos animais a um nível humano. Contudo, quando olhamos à dura realidade da vida selvagem, vemos que essa questão de empatia inter-espécies, e mesmo intra-espécies, não existe de forma natural ou tão abundantemente como queremos acreditar.
Por outro lado, nós, que nos julgamos mais sensíveis do que as gerações anteriores, somo-lo apenas no que toca ao visível. A nossa espécie extinguiu, de forma direta, milhares de espécies neste planeta e nem por isso se comove com isso no dia-a-dia. Estamos a destruir o nosso próprio planeta com a maquinaria andante que usamos, mas não vemos a grande maioria das pessoas a deixar de viajar de avião por causa disso.
O que isto tudo me diz é que a nossa espécie tende a velar pela criação de um imaginário perfeito para poder viver na crença de que as suas ações correspondem aos seus valores. Se o incómodo for atirado para debaixo do tapete não sabemos que lá está e podemos continuar a levar a nossa vida.
Por outro lado, se atentarmos nos 2 axiomas da "sociologia cósmica" proposta por Liu Cixin — "Primeiro: A sobrevivência é a principal necessidade da civilização. Segundo: A civilização cresce e expande-se continuamente, mas a matéria total no universo permanece constante" (ver a Hipótese da Floresta Negra) — percebemos que podemos desejar controlar a realidade natural a partir de um conjunto de valores, imaginariamente ou logicamente perfeitos, mas a homeostase que mantém a Realidade efetiva é muito ténue e qualquer pequeno desequílibrio a coloca em causa. Basta refletir sobre a anunciada 6ª extinção em massa que estamos a produzir.
Posto isto, não tenho nenhuma resposta cabal para nada, apenas pretendia com este texto constatar que o facto de me ter tornado mais sensível não corresponde exatamente a algo melhor. Mas mais do que isso, essa super-sensibilidade pode estar a distorcer a nossa capacidade para compreender o espectro de realidade que habitamos.
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