maio 10, 2023

O descarrilar de um romance filosófico

Vi o filme quando saiu, mas já não recordava nada além do Jeremy Irons passeando pelas ruas de Lisboa. Entretanto encontrei o livro numa lista de livros relacionados com romances filosóficos, e relendo a premissa fui a correr adquiri-lo. As primeiras 100 páginas foram ouro, com uma viagem por entre poesia, melancolia e existencialismo, do centro da Europa para a costa oeste portuguesa. Mas a partir do meio iniciou-se um declínio, atingindo o total estrambelhamento perto do final. Não se aproveita nada no fim da leitura. São demasiados erros narrativos a que se juntam ainda problemas morais que tornam os personagens insustentáveis. Ainda fui rever o filme, e nota-se que houve um esforço dos guionistas para resolver alguns problemas, mas não sendo o meio adequado ao tipo de premissa, fica também bastante aquém da experiência esperada.

A premissa assenta na descoberta de um livro português, por parte de um professor suiço na meia-idade, que desencadeia neste uma urgência por abandonar tudo e partir em busca do autor do livro. Nada que muitos de nós já não tenham sentido vontade de fazer, numa ou noutra fase da vida. Por outro lado, os primeiros excertos do livro português fazem lembrar as divagações Pessoa no seu Desassossego, instigantes e belas, o que nos leva a imergir totalmente no romance. 

Os problemas acontecem a vários níves: formais, conteúdo, narrativos e morais. 

Na forma, a escrita é bastante básica, não consigo ler o original alemão, mas verifiquei que vários problemas ocorrem tanto em inglês como francês. Ou seja, não raras vezes não percebemos o que está a ser dito a quem, quando ou como. É um emaranhado que acontece porque o autor tenta fundir pensamento e ação, mas falta-lhe traquejo para o fazer sem misturar tudo. Sobre o conteúdo, nunca se chega a perceber porque é que Gregorius parte para Lisboa. No filme isso é tornado claro, a urgência de encontrar a mulher que salvou na ponte. Mas no livro, não é apresentado desse modo e ele simplesmente resolve ir. Podemos subentender que se deixou fascinar pelo livro português, mas para quem leu a vida toda, é especialista em clássicos, e encontrou tanta e tanta coisa pelo mundo fora, fazer deste livro o motivo, é uma tontice sem sentido. 


Vou agora separar os outros dois pontos — narrativa e moral —porque contém spoilers.


**** SPOILERS *****

Na narrativa, tudo começa com uma senhora que se quer atirar de uma ponte em Berna, que sendo salva por Gregorius revela ser portuguesa e foge, desencadeando tudo o que se sucede, mas que nunca mais volta a surgir em todo o romance. Esfuma-se, cria um verdadeiro buraco negro narrativo. No filme, os guionistas que fizeram a adaptação taparam o buraco, indicando ser Catarina Mendes, a filha do carniceiro da PIDE. Mas na verdade, só tapa o buraco, não é uma revelação que justifique nada, menos ainda complete qualquer círculo narrativo como seria suposto. 

Ainda no campo da narrativa, Pascal Mercier utiliza uma estratégia demasiado básica para construir a personagem de Amadeu, ao lançar Gregorius além da viagem a Lisboa, numa senda de bater à porta de todos aqueles que conheceram Amadeu, como num videojogo à procura de conseguir mais alguns pontos, sem qualquer razão que justifique esse deambular. Por isso, quando chegamos a conhecer Estefânia, uma das chaves do todo, já não nos interessa, ela não passa de mais uma peça de um aparente puzzle, mas que nada acrescenta a nossa experiência, mesmo tendo coisas novas para dizer. Torna-se inevitável pensar que em vez de 400 páginas, 200 teria ficado um bom livro, 100 teria sido excelente.

Por fim, a moral. Amadeu, o autor do livro português é apresentado como o homem perfeito  — literato, empático e belo. Todas as descrições parecem estar a falar de um qualquer deus grego com dotes intelectuais e altruístas inesgotáveis. Soando essas descrições, do seu génio e bondade, como grandes clichés, parece que o autor se terá apercebido disso, e talvez por isso terá resolvido oferercer-lhe um traço negativo, contudo, acredito que numa total ausência de consciência do que estava a fazer, tornando a personagem completamente insustentável. 

A 3/4 do livro é revelado que Amadeu, com 20 ou 21 anos resolveu fazer uma cirurgia que o impossibilitasse alguma vez de voltar a ter filhos (isto foi cortado no filme). Por si, isto já seria uma tontice, mesmo com as justificações de que o mundo é muito mau, e não se quer trazer uma nova vida para sofrer, seria difícil convencer um médico a realizar a operação nesta idade, com tanta vida e mudanças de ideias pela frente. Mas o problema grave surge a seguir. Quando é dito que Amadeu se casou com Fátima, que esta queria ter filhos, mas ele nunca lhe revelou que fez a operação. Isto é um desastre. Uma pessoa não pode ser apresentada como um ser de elevada racionalidade e altruísmo e ao mesmo tempo ser não só um enorme mentiroso, com lata para durante anos e anos disfarçar a situação, mas mais do que isso ser um ladrão de sonhos, um destruidor de vidas. Tem todo o direito de não querer ter filhos, mas não pode roubar esse direito aos outros por via da fraude, um embuste obsceno. 

O livro acabou para mim neste ponto, porque denota uma enorme incompreensão por parte do autor tanto da psicologia como da justiça humanas.

5 comentários:

  1. Caro Nelson. Perdoe-me e não me leve a mal, mas discordo inteiramente da análise e conclusões a que chegou. Fico com a ideia de que lemos dois livros diametralmente opostos. Parece-me que o Nelson Zagalo se prendeu a pormenores que são totalmente terciários (já nem digo secundários) para a narrativa geral, pormenores que (legitimamente, enquanto leitor) não gostou, mas que depois os transformou numa síntese geral do livro. Uma síntese que, e esta é somente a minha opinião, me parece desfasada da história que se quer contar e que tampouco vai ao encontro dos sentimentos que o livro conseguiu fazer ressoar em tantos leitores. Mas, como frisei, é apenas a minha opinião 😊

    O Peter Bieri, que é filósofo e escreve através do pseudónimo Pascal Mercier, criou uma personagem, o Raimund Gregorius, que está em em conflito interno com aquilo que sempre foi e é, com aquilo que os outros sempre esperaram e esperam dele, e, acima de tudo, com aquilo que ainda deseja vir a ser – mas um “vir a ser” sobre o qual já não tem muita esperança. Estamos a falar de um professor a chegar aos 60 anos que ensina línguas mortas (latim, grego…), a quem os alunos chamam de “Mundus” (um conhecedor de tudo) mas que ao mesmo tempo consideram ser alguém terrivelmente previsível. O Gregorius é um homem que sempre viveu através de rotinas e que se sente desconfortável em sair delas, é alguém que, por exemplo, há décadas que prefere o mesmo e velho oftalmologista que lhe receita o mesmo para a sua visão (ou seja, usa sempre as velhas e repetitivas lentes para enxergar o mundo à sua frente, dito de forma metafórica), a que se junta o enorme trauma que foi o seu divórcio.

    Por exemplo. Ao longo da narrativa, Mundus vai recordando (logo, enunciando aos leitores), os pequenos episódios e pormenores que levaram à degradação e fim da sua relação: ficou-lhe a cicatriz da acusação de que, ao fim e ao cabo, ele é uma pessoa aborrecida, chata, previsível e sem vontade em conhecer a vida fora da sua bolha, uma bolha feita de livros e velhas narrativas escritas em línguas mortas. Em suma, uma criatura completamente desinteressante. Este trauma é tão premente que ele próprio vai olhando para outros pormenores do seu passado, e da sua vida atual, através dessas lentes, ao ponto de se sabotar a si próprio, de se anular, na medida em que decide aceitar que ele é aquilo que os outros veem e pensam sobre si – o ser aborrecível, previsível, sem rasgos de originalidade: e, sendo assim, mais vale seguir o guião, pois não é perto dos 60 que alguma coisa vai mudar, resignando-se à ideia de que um mundo de novas possibilidades para si já se extinguiu.

    Mas eis que, como acontece na vida de muitos de nós (e não interessa a idade), de forma inesperada sucede um “fenómeno” que acaba por ser o catalisador que nos leva a entrar em rutura com o nosso passado e o nosso presente, que nos leva a um total choque e a uma tentativa de fuga em relação ao que sempre foram as nossas premeditações e ações. O descontentamento que existe em nós ganha forma e leva a um agir, em vez de se ficar pelo campo dos pensamentos. O acontecimento na ponte da cidade de Berna, e que ocorre no início do Comboio Noturno para Lisboa, é esse fenómeno catalisador, um fenómeno aparentemente sem importância para a vida da personagem principal e que, noutras circunstâncias, ele ignoraria… mas sucede que nesse dia ele decidiu dar-lhe importância. Qual o motivo? Não há um motivo específico, e nem tem de existir para a história em causa, até porque é da mais elementar natureza humana tomar decisões, em determinado momento, que não obedecem a um qualquer motivo racional, são decisões geradas por sentimentos (mesmo que não tenhamos plena consciência que são eles a conduzir as nossas ações).

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  2. O que aqui interessa é que o ato de Gregorius em dar importância a alguém que desconhece por completo, a alguém cujas atitudes e motivações ele desconhece totalmente, é, por si próprio, um ato revolucionário. Revolucionário porque rompe com a apatia e desinteresse que existe na nossa sociedade em relação ao “outro”, ao “outro” que desconhecemos. Gregorius é a única pessoa, naquele triste dia de chuva e com tanta gente a passar naquele local, que se interroga sobre o que se está a passar com alguém que está mesmo ali ao seu lado, e ao interrogar-se ele vai observar, e ao observar ele percebe que há ali uma misteriosa história de vida: uma história de vida que parece conduzir alguém para uma de ato de desespero existencial (um possível suicídio, neste caso, e que ele evita). Raimund Gregorius sente-se impelido a perceber que livro é aquele que depois encontra no casaco abandonado, e cujas palavras, numa língua que desconhece, levaram alguém a um desespero existencial. Qual é a história daquele livro, do seu autor e das palavras que ali imprimiu? Todas as rotinas que Mundus estabeleceu para si, durante quase 60 anos, foram abandonadas quando decide aventurar-se numa demanda por respostas, pela descoberta de uma história sobre o “outro”.

    Este interesse pela história que se esconde atrás do “outro”, pela história que faz mover o “outro, é um ato revolucionário que leva o Gregorius a um confronto com a sua história de vida pessoal, a um confronto com o que todos, inclusive ele, esperam de si. Desse confronto surge a coragem revolucionária para, finalmente, fazer algo diferente com o seu futuro. E assim tem início uma viagem da chuvosa Berna para a solarenga Lisboa, numa busca por quer saber tudo sobre o Amadeo de Almeida Prado, o “ourives das palavras”.

    Não é por mero acaso que o Pascal Mercier coloca Mundus a coscuvilhar o período da ditadura em Portugal, pois o ato revolucionário e de desafio deste último encontra eco nas histórias de resistência desse tempo e lugar, que paulatinamente vai conhecendo. São histórias de quem resistiu e desafiou uma vida que lhes diziam não poder ser diferente. A isto juntam-se mais outras histórias, que vão dando consistência ao todo maior: a da obsessão doentia da irmã de Amadeo de Almeida Prado pelo irmão (fruto de uma necessidade de posse e controlo sobre este, misturada com a necessidade de se sentir amada, porventura também carnalmente, por ele); o constante desafio à figura paternal, um juiz ligado ao regime salazarista; as histórias de infância do Amadeo na escola e a forma como moldaram a sua personalidade; a cobardia, a traição e o sentimento de culpa de quem nos jurou fidelidade e amizade; e tanto mais. E como esquecer a ida de Gregorius à velha, abandonada e decrépita escola, o tempo que aí passou sozinho, durante a noite, entre paredes decadentes e vestígios de infância e juventude, refletindo sobre como a nostalgia tanto pode ser uma prisão, em que se fica atado ao passado, como uma possibilidade de olhar para trás e pensar no que também poderia ter sido de diferente para nós. Acima de tudo, é a descoberta dos escritos de Amadeo de Almeida Prado que cimentam a Mundus a revelação de que há outras vidas a viver.

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  3. Confesso que ignorar estas histórias e a história maior com que se relacionam, sem sentir (não é só racionalizar) as suas relevâncias, me faz confusão. E descrever a relação amorosa com base em alguns pormenores anedóticos é algo que, igualmente, me faz confusão. E não posso concordar, de forma alguma, que exista uma “enorme incompreensão por parte do autor da psicologia humana”, como escreve o Nelson. Aliás, convido-o a conhecer melhor a carreira académica do Peter Bieri.

    Mas isto é o meu julgamento subjetivo 😊 Vale o que vale, portanto.

    O livro fez-me sentir e refletir sobre como pode ser o processo de descoberta do “outro”, o de como pode ser esse caminho trilhado, um caminho pejado de mistérios (uns explicáveis, outros nem por isso): mas esse caminho pela história/narrativa do “outro também tem tudo para nos levar a uma profunda introspeção sobre nós próprios. É um olhar para dentro que, de início, pode gerar angústia – por acharmos que falhámos na vida, por acharmos que não tomámos as decisões certas e não enxergámos outras alternativas… ou sequer tivemos coragem para enveredar por elas. Mas também é um olhar para dentro que, após essa fase de angústia, pode ser libertador, no sentido em que a bolha em que vivemos faz ‘pop’ e aceitamos que nunca é tarde para fazermos diferente.

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  4. Num tom mais crítico (e não me leve a mal, por favor), parece-me que o livro foi lido um pouco a correr, não? O Comboio Noturno para Lisboa é para ler devagar, devagarinho. Podemos pensar que estamos a ler devagar, devagarinho, mas atualmente, com os ritmos que nos são impostos, inconscientemente não o estamos a fazer isso, o que nos leva a uma leitura mais mecânica e a extrapolações extemporâneas. Se estiver enganado, peço logo desculpa. Até porque, como volto a frisar, isto é só a minha opinião e visão. Cada um desfruta e entende à sua maneira os artefactos culturais que lhe vão parar às mãos… ou aos olhos. Há quem olhe de relance para a La tentación de San Antonio, do Salvador Dali, e passe para outra coisa sem achar que exista ali alguma coisa de especial, enquanto outros ficam longos minutos a deleitar-se com aquela forma de expressar a tola resistência à tentação sexual. Eu, por exemplo, recentemente desfrutei cerca de cem horas com o videojogo Control (suspeito eu sou, por ser fã das narrativas do Sami Jarvi a.k.a. Sam Lake), enquanto outros disseram que “acabaram” o jogo em 10 horas ou algo à volta disso. Eu demorei muito mais tempo com o The Witcher III, e também ouvi quem dissesse (e acredito) que “acabou” em 15 ou 20 horas. Mas isto sou eu, que prefiro “usufruir” e “descobrir”, à custa do fator tempo, em vez de “consumir” ou “acabar”.

    Caro Nelson, não me leve a mal. Comboio Noturno para Lisboa foi mesmo um livro que me marcou, assim como a muitas outras pessoas com quem falei sobre a obra. Sinceramente, gostaria que outras pessoas tivessem a oportunidade de o ler, mas eu bem sei que, hoje em dia, é fácil ler uma critica mais negativa sobre uma obra e logo achar que nem vale a pena pegar na coisa. Gostava que isso não fosse assim, independentemente das livres opiniões de cada um. O filme, apesar do Jeremy Irons (sempre muito bom) e de uma fugaz participação do Bruno Ganz (sempre excelente), pareceu-me que ficou muito aquém do que poderia ser, mas não deixa de ser um filme que recomendo.

    Um abraço! 😊

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    1. Obrigado João 🙂

      Uma defesa deste calibre, merecia uma resposta maior da minha parte, mas nada me move contra a obra, que tanto quis adorar, e menos ainda o seu autor que respeito enquanto académico. Assim direi apenas duas coisas simples.

      O livro fala de tudo o que mencionas, eu li tudo isso, e adorei, tanto que sabendo de muitas outras críticas negativas, nem queria acreditar que existiam, isto nas primeiras 100 páginas, por isso disse que essas páginas eram ouro 🙂

      Contudo, não chega uma premissa e algumas boas páginas para criar um romance. O autor denota falta de competências para conduzir o todo, não numa frente, mas em múltiplas frentes, desde os artifícios à lá Dan Brown para suster a nossa atenção, à imoralidade de Amadeu insustentável em pleno século XXI. Como disse a certa altura, podia ter escrito uma obra mais aberta e ficar-se pelas primeiras 100 páginas, e eu teria dado nota máxima. Mas o resto do livro é todo um sistema mecânico de tentativa de dar resposta pelo romance à inquietude filosófica, mas que falha totalmente. Mesmo a introdução da revolução portuguesa aparece ali enchertada.

      Mas claro que enquanto leitores tomamos muitas decisões quanto ao que estamos a ler para construir a nossa interpretação, e aquilo que te interessa a ti, não é naturalmente o mesmo que me interessa a mim, e por isso podemos ler livros diferentes. É essa a beleza da arte, e da literatura.

      E quero agradecer-te o comentário e a defesa do livro que fazes, porque também não quero que outros deixem de o ler por causa da minha crítica. Experimentem, viagem 🙂

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