janeiro 09, 2022

Galatea 2.2 de Richard Powers

"Galatea 2.2" é um livro sobre Inteligência Artificial (IA) escrito em 1995, algo que poderia ditar imediatamente todo um texto datado, no entanto não é daí que surgem os seus maiores problemas. Powers é uma mente brilhante, capaz de um olhar analítico em profundidade e a IA acaba sendo aqui uma ótima desculpa para dissertar sobre a vida e o ato de viver. Mais ainda porque o livro é escrito num tom autobiográfico, com o protagonista a ser nomeado com o nome do autor, um escritor escrevendo o seu quarto romance, aquele que estamos a ler, variando os países e a língua em que a sua mulher é profissional de tradução, mas mantendo intacta a vontade do autor de nunca ter filhos. Esta sua vontade acaba sendo central para compreender o desígnio final da IA criada.

O livro apresenta um modelo narrativo, à partida, simplista. Um duplo enredo entrelaçado: por um lado, os amores perdidos de Powers; por outro a tentativa de ensinar uma máquina a tornar-se inteligente. Deste modo, Powers oferece dois registos imensamente distintos, o lado amoroso do romance, pouco original, e o lado científico, como sátira da academia e as suas Duas Culturas (humanidades vs. ciências). As duas linhas são não só totalmente entremeadas de forma não-linear, criando múltiplas situações de disrupção na compreensão do sentido da leitura, mas são ainda laboradas por meio de secções que vão variando entre secas descrições e instigantes pequenas histórias. Tudo isto apresentado por meio de uma escrita altamente elaborada, que não raras vezes nos obriga a reler frases para extrair sentido, sendo que por vezes nos surpreendem pelo brilhantismo, enquanto noutras nos aborrecem pelo esforço exigido por tão pouco.

Assim, temos momentos de leitura em que a nossa atenção é completamente raptada pelo contar de história, e outros em que não percebemos completamente o que estamos a ler, em que vamos sendo expostos a ideias, digressões e dissertações sobre tudo e nada, mas essencialmente sobre a visão do autor do que é sentir-se humano. Muitas metáforas são sublimes e alargam a nossa consideração pelo texto e o autor, mas outras parecem mudas, não de sentido, mas de emoção. Existe um claro excesso de intelectualização, não pelo aprofundar das questões filosóficas, mas pelo modo como são apresentadas as questões, não só pela ausência de contextualização, mas pela escrita minimal que obriga o leitor a correr atrás para preencher as lacunas, fazendo sentir que o livro se alonga muito para além do sustentável.


*** SPOILER ***

No final, tudo parece fazer sentido, já que era de dar vida a uma máquina que se tratava e esse fenómeno é a principal interrogação na cabeça de Powers. Não propriamente sobre a nossa capacidade de construir uma máquina inteligente, mas sobre a criação de vida efetiva. Isso é totalmente plasmado no final inesperado, mas em total acordo com a filosofia de vida do autor: o suicídio da IA. Isto fica bastante claro quando contextualizamos o autor, que tal como o protagonista, nunca quis ter filhos, terminando várias relações por essa sua intransigência, sobre o que disse, ainda bem recentemente, em 2018, "ter sido a melhor coisa que fez pelo mundo". E no entanto, apenas 3 anos depois, em 2021 e com 63 anos, ofereceu-nos um dos melhores livros do ano, "Bewilderment" (análise VI), em que apresentava uma belíssima relação entre um pai e um filho. Contudo, pensando no desenlace da personagem do filho, próximo do que aqui acontece com a IA, fica a ideia de que Powers o fez apenas para demonstrar que independentemente do que poderia ter sido a sua vida, de nada teria adiantado!

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