julho 14, 2020

Nietzsche, o psicoterapeuta

Não lia Nietzsche há mais de 25 anos, já tinha esquecido a sua força retórica, tinha-me habituado a pensar que os seus aforismos serviam apenas os sonhos de adolescente. Aliás, ao longo dos anos fui lendo, aqui e ali, algumas interpretações e teorias sobre as suas ideias, umas interessantes, outras bastante críticas, mas nunca me apeteceu lá voltar. Agora ao ler "Quando Nietzsche Chorou" (1992) acabei por dar comigo a viajar no tempo até às leituras de "Assim Falava Zaratustra" (1885), "Para além do Bem e do Mal" (1886) e de "O Anticristo" (1888). Recordei o “super-homem”, mergulhei de novo no destemido conceito que tanto apaixonou Jim Morrison, mas tenho de dizer que o que extraí foi bem diferente, para o que contribui imenso a escrita pedagógica de Yalom, mas também o facto de ter mais do dobro da idade que tinha.
Li a versão portuguesa da Saída de Emergência, mas não coloco aqui a capa porque a mesma usa uma foto da catedral de Notre Dame em Paris quando toda a ação se passa em Vienna.

"Quando Nietzsche Chorou" é um trabalho brilhante de Irvin D. Yalom, pelo modo como usa o meio de contar histórias, e em concreto o modelo do romance, para “ensinar os leitores”. Yalom é muito frontal, não pretendia escrever um mero romance, nem pretendia com ele dizer grandes verdades, o que lhe interessava era contar uma história através da qual se pudesse aprender mais sobre o psicologia do humano e nomeadamente sobre a arte da psicoterapia. Obviamente que Nietzsche não foi psicólogo, mas o conceito criado por Yalom, colocando o filósofo primeiro no divã e depois no lugar de terapeuta, é absolutamente brilhante. Ao longo das páginas temos a oportunidade não só de compreender como nasceu a psicoterapia, Freud aparece como amigo do médico de Nietzsche em algumas sequências, mas essencialmente porque nasceu. A isso acrescenta-se o uso que Yalom faz da psicoterapia para analisar, diria mesmo “esventrar”, o corpo teórico de suporte às grandes teorias de Nietzsche desde o choque entre o niilismo e a verdade suportada pelo conhecimento absoluto, da crítica à religião — “Deus está morto.” —, ao desprezo pela moral "Torna-te quem tu és!" e “O que não me mata torna-me mais forte!”.

Enquanto ia lendo, pensava para mim se muitas das ideias que carrego não estariam contaminadas deste espírito a quem dei bastante atenção no final da adolescência, mas de quem muito sinceramente nada recordava, ou pensava nada recordar. Várias vezes ao longo dos últimos anos me fui questionando se realmente teria compreendido alguma coisa “Assim Falava Zaratustra” que me ficou como o texto mais denso e intrincado que alguma vez li. Mas ao terminar esta leitura, percebi que tinha reencontrado Nietzsche, ele estava ali na minha frente, completo e íntegro, como desde sempre. Não que o tenha seguido, julgo que nunca seguimos ninguém em exclusivo, mas algumas das suas ideias martelaram parte daquilo em que me transformei. Talvez a mais evidente de todas tenha ficado pelo valor que atribuo ao conhecimento, à razão e à ciência, em detrimento de qualquer outro atributo humano, seja do foro material ou imaterial. Podemos questionar tudo, o niilismo tem esse problema, e chegar a um ponto de nada adiantar nada, mas é aqui que Nietzsche se distingue, porque vê o conhecimento como a única via capaz de criar e manter entreaberta uma porta no nosso caminho, sempre quase lá e ao mesmo tempo sempre inalcançável, instigando-nos a continuar todos os dias. 

O livro não será uma obra simples para quem desconheça os domínios da psicoterapia ou Nietzsche, mas não é complexa. Aliás, a desconstrução de Nietzsche é imensamente conseguida, dada a construção do personagem totalmente moldada pelas suas ideias. Talvez o seu maior problema seja o excesso de exposição, com Nietzsche e Breuer a investirem muitas páginas de diálogos pejados de ideias, conceitos e teorias. Mas este não é um mero livro de entretenimento, é um livro com uma missão, e como com todas as obras dotadas desse propósito, é preciso aceitar a proposta do autor para poder retirar o máximo do que nos é proposto. 

Deixo alguns dos excertos que marcaram esta leitura, e me fizeram dar voltas às ideias, nomeadamente alguns diálogos entre o médico Josef Breuer e Friedrich Nietzsche. Os excertos são da edição brasileira.

****************************

Nietzsche: “A sensualidade é uma cadela que morde nosso calcanhar! E quão habilmente essa cadela sabe mendigar um pedaço de espírito, quando se lhe nega um pedaço de carne (..) “O desejo, o estímulo, a voluptuosidade... são os escravizadores! A ralé desperdiça a vida como suínos alimentando a vala do desejo.”

Nietzsche: “Você quer voar, mas não se pode começar a voar voando. Primeiro, tenho que lhe ensinar a andar, e o primeiro passo ao aprender a andar é entender que quem não obedece a si mesmo é regido por outros. É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo.”

Nietzsche: “afirmei que havia uma divisão básica no estilo dos homens: aqueles que desejam a paz de espírito e a felicidade têm que acreditar e abraçar a fé, enquanto aqueles que desejam a verdade devem renunciar à paz de espírito e devotar sua vida à investigação. Eu sabia disso aos 21, há meia vida. É tempo de você aprendê-lo: deve ser seu ponto de partida básico. Você deve escolher entre o conforto e a verdadeira investigação! Caso escolha a ciência, caso opte por ser libertado das cadeias sedativas do sobrenatural, caso, conforme alega, escolha evitar as crenças e abraçar o ateísmo, então não poderá ao mesmo tempo ansiar pelos pequenos confortos do crente. Se você matar Deus, terá também que deixar o abrigo do templo.”

Nietzsche: “– Não estou muito preocupado. Acho que tenho tido quarenta anos desde que cheguei aos vinte!”


***Cap. 16***

Breuer: “Tenho pensamentos mórbidos, sombrios. Com frequência, sinto como se minha vida tivesse atingido o cume. – Breuer pausou para se lembrar de como o descrevera a Freud. – Escalei até o pico e, quando observo além da borda para ver o que existe adiante, vejo apenas deterioração: a queda no envelhecimento, netos, cãs ou talvez– deu um palmadinha no centro calvo do couro cabeludo– simplesmente a calvície. Mas não, isso não está exatamente certo. Não é a queda que me incomoda... é a não ascensão.”

Breuer: “– Às vezes, imagino que todos têm uma frase secreta, Friedrich, um tema profundo que se torna o mito central da vida da pessoa. Quando eu era criança, alguém uma vez me chamou de "o rapaz infinitamente promissor". Adorei esta frase. Entoei-a para mim mesmo milhares de vezes.”

Nietzsche: “– E o que aconteceu com aquele rapaz infinitamente promissor?
Breuer: “– Ah! Esta pergunta! Formulo-a com frequência. O que ele veio a ser? Sei agora que não há mais promessa... ela se esgotou!”

Nietzsche: “– Diga-me, o que quer dizer exatamente com "promessa"? 
Breuer: “- Não sei exatamente. Pensava que sabia. Significava o potencial de escalar, de me alçar às alturas; significava sucesso, aclamação, descobertas científicas. Mas provei o fruto dessas promessas. Sou um médico respeitado, um cidadão respeitável. Realizei algumas descobertas científicas importantes: enquanto existirem registros históricos, meu nome será sempre conhecido como um dos descobridores da função do interior do ouvido na regulação do equilíbrio. Além disso, participei da descoberta de um importante processo de regulação respiratória conhecido como reflexo de Herring-Breuer.”

Breuer: “As metas realizaram-se, sim. Mas sem satisfação, Friedrich. De início, a euforia de um novo sucesso durava meses. Gradualmente, porém, foi se tornando mais volátil – semanas, depois dias, até horas – até que agora o sentimento se evapora tão rapidamente, que já nem penetra em minha pele. Acredito agora que minhas metas foram imposturas: jamais foram o verdadeiro destino do rapaz infinitamente promissor. Muitas vezes, sinto-me desorientado: as antigas metas deixaram de funcionar e perdi o dom de inventar metas novas. Quando penso no fluxo de minha vida, sinto-me traído ou enganado, como se tivesse sido vítima de uma piada celestial, como se tivesse esgotado minha vida dançando à melodia errada.”

Nietzsche: “- Mas, como é que não ajudou à sua própria carreira”
Breuer: “- Eu protelei a redação e publicação de artigos científicos. Recusei-me a dar os passos formais preliminares necessários à nomeação para a cátedra. Não aderi às associações médicas corretas, nem participei de comissões universitárias, nem fiz os contatos políticos corretos. Não sei por quê. Talvez isso tenha a ver com poder. Talvez eu recue da arena competitiva.”

Nietzsche: “– Então, isso foi aos 29. E ao chegar aos quarenta, a segunda crise?
Breuer: “– Uma ferida mais profunda. Chegar aos quarenta abalou a ideia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabê-lo aos quarenta foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que "o rapaz infinitamente promissor" foi meramente uma ordem de marchar, que "promissor" é uma ilusão, que "infinitamente" não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens marchando em direção à morte.”

*** Cap. 18 ***

Nietzsche: “– O problema, Josef, é que sempre que abandonamos a racionalidade e recorremos às faculdades inferiores para influenciar os homens, resulta um homem inferior e mais vulgar. Quando diz que deseja algo que funcione, tem em mente algo capaz de influenciar as emoções. Bem, existem especialistas nisso! Quem são eles? Os sacerdotes! Eles conhecem os segredos da influência! Eles manipulam com musica inspiradora, eles nos apequenam com pináculos altaneiros e naves monumentais, eles encorajam o desejo de submissão, eles oferecem a orientação sobrenatural, a proteção contra a morte, até a imortalidade. Mas veja o preço que cobram: escravidão religiosa; reverência pelos fracos; estase; ódio ao corpo, à alegria, a este mundo. Não, não podemos recorrer a esses tranquilizantes, a esses métodos anti-humanos! Precisamos de encontrar formas melhores de aprimorar os nossos poderes da razão.”

6 comentários:

  1. Boa resenha Nelson. Também cheguei a Nietzsche no fim da adolescência, por imposição académica, a par de Marx e Hegel e hoje sinto de igual modo o quanto contribuiram para a construção do meu edifício religioso, moral e no valor atribuído ao conhecimento, de forma quase imperceptível.
    E talvez por isso, por nunca ter encontrado respostas ou fórmulas mágicas que satisfizessem cabalmente as minhas interrogações, nunca pertenci por exemplo a uma igreja, a um sindicato ou a um partido político, embora sempre tivesse preocupações religiosas, sociais e éticas. Mas nunca abri mão de uma condição um tanto distanciada, da liberdade de não pertencer.
    Mais perceptível foi o meu encontro com o existencialismo e com Sartre, nascendo logo ali um encanto, como que uma fonte de luz e que mais tarde teve ecos com a leitura de Vergílio Ferreira. Se um dia se proporcionar, e não for pedir muito, gostaria de ter a sua opinião sobre esta escola de pensamento.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Olá Joaquim
    Obrigado pelo comentário. Sobre o existencialismo, já fui por aqui escrevendo algumas coisas, não que seja, de todo, especialista. Atravessei grandes momentos de total identificação com o movimento, e noutras fases de grande recusa e saturação.

    Julgo que acabou fazendo a ponte com o realismo do final do século XIX, tornando-se no movimento quase natural do meio do século XX. Muita da grande literatura internacional abraçou o movimento e fez dele o centro da sua motivação. É difícil escapar-lhe, a não ser que não reflitamos sobre nós mesmos, e muitos dos grandes romances são profundos questionamentos do que é ser-se humano.

    um abraço

    ResponderEliminar
  3. Nietzsche foi um grande cômico, um grande desconstrutor, um grande poeta e pensador. Há uma comum ideia, notadamente crítica, de que Nietzsche buscava tanto destruir a moral quanto liberar os homens de suas amarras (vide Rousseau, que Nietzsche não gostava, mas ambos tem uma semelhante visão do que é a sociedade civil). Ao longo do desenvolvimento do seu pensamento, notadamente na segunda fase, em que rompe com Schopenhauer e Wagner, até sua terceira fase com o Zaratustra, texto que encontra uma voz autêntica. A crítica nietzschiana está sobremaneira direcionada à metafísica ocidental, ao cristianismo, à ciência de sua época e à moral de rebanho. O pensador prussiano identificou nessas práticas culturais o que chamou de instinto ascético, a compulsão e o desejo pela pureza, pela Verdade absoluta, pela imobilidade. Ora, se a existência é movimento (como diz Heráclito nos seus fragmentos), tudo o que é imóvel não pode se situar na existência. Como o crivo de crítica dos valores nietzschianos é o que ele chamou de afirmação da vida, em todas as suas contradições, buscar uma imobilidade, uma Verdade absoluta que não aceita perspectivas, uma pureza ascética e por vezes solipsista que nega todo o sofrimento, é negar a vida! Por isso toda vertente do pensamento coloca normalmente a felicidade num além mundo, na cidade de Deus, no mundo das idéias, na teoria de tudo. por isso Nietzsche retoma conceitos como o Amor Fati, ame seu aqui, não o que supostamente viria depois como verdadeira felicidade. Por isso que ele fala do Eterno Retorno, potente metáfora que nos diz para identificarmos momentos de nossas vidas que amamos tanto ao ponto de querer que se repetissem eternamente. Por isso que ele fala do Além-do-Homem (tradução mais correta, segundo germanistas), o sujeito que pensa não como mais uma gota no oceano homogêneo de tudo, mas como se percebendo um Ente diferente, assim como todos o são: diferentes. E afirmar a vida em suas contradições. Nietzsche dizia que negar o sofrimento também é negar a vida: usemos o sofrimento para aprender com ele, sabermos que ele está na vida, está na complexidade de tudo. O bigodudo tinha um projeto muito claro quando queria retomar o modo pré-socrático de filosofar, por isso escrevia poeticamente e fazendo largo uso de metáforas que, compreendidas ao pé da letra, parecem levar a uma utopia ou mesmo, segundo alguns mais extremos, ao nazismo. Até aqui sua crítica floresce: filosofar não hermeticamente e num logicismo sistemático e compulsório, mas filosofar junto com a Arte, que para ele era o máximo de afirmação da vida humana. Estou escrevendo meu TCC sobre Nietzsche, Wittgenstein e o problema de abertura da linguagem.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Assim como a "Morte de Deus", também significada pelo viés da metáfora, é um alerta para a fragilidade dos fundamentos dos valores ditos absolutos, portanto também imóveis e a priori, calcados antes da existência. A morte de Deus é Nietzsche nos mostrando como os valores ocidentais são frágeis, frutos de relações de força, caóticas, não de uma suposta inferência causal de um Motor Primeiro. No crepúsculo dos Ídolos há uma frase lapidar muito importante para a psicologia, curso que estou fazendo: "O homem inventou o ideal para negar o real", portanto colocou no suprasensível, no sumo e eterno Bem, na existência verdadeira para além da vida, etc. Quando a existência está no devir, nos conflitos de forças, no movimento não teleológico e diverso.

      Eliminar
    2. Heitor, que brilhante texto aqui nos deixou, muito obrigado. Fez-me viajar por entre ideias e conceitos, muito bom. Vou querer ler esse seu trabalho :)

      Tendo a concordar com a ideia de Nietzsche como esteta, aliás só isso pode justificar que alguém tão pouco metódico tenham conseguido alcançar tão alto patamar de respeitabilidade no domínio.

      Por outro lado, a metáfora do Deus está morto é uma espécie previsão do desmoronar do ideal cristalizado pela religião que só viria a suceder a partir do final do século xx, com o pós-modernismo. Algo que não compreendi da primeira vez que o li, mas hoje me parece muito claro.

      Eliminar