abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.

1. O livro abre com a ideia da “tinta invisível” como uma espécie de subestrutura das histórias que os recetores não vêem mas garante a sustentabilidade das histórias e aceitação por parte desses mesmos recetores. O primeiro elemento dessa substrutura, é apresentada como “Sete Fáceis Passos” ou “Era Uma Vez...” e que correspondem ao que a Pixar convencionou como “Story spine”, mas que foi na verdade trazido para as comunidades de guionistas pelo Brian McDonald. Assim, os 7 passos são:

1) Era uma vez

2) e todos os dias

3) até que um dia

4) e devido a isso

5) e devido a isso

6) até que finalmente

7) e desde esse dia

2. O segundo ponto da discussão sobre a subestrutura é dedicado ao que McDonald chama de Armadura, e que no fundo diz respeito ao Tema. Pode parecer que não faz sentido dar outro nome, e McDonald é prolifero em dar nomes, e é atacado por causa disso, mas faz algum sentido. O autor refere que armadura é um termo mais lato e ao mesmo tempo mais concreto na definição do tema. Ou seja, para ele o tema não é apenas o assunto tratado pela história, mas é antes a subsestrutura que sustenta toda a história e a impede de se tornar irrelevante. A armadura não é apenas o tópico da história, mas a moral ou lição, no fundo aquilo que motiva alguém a escrever a história, o porquê

Tem de existir algo para contar, e esse algo não pode ser apenas uma sucessão de eventos com um conflito e um clímax, mas precisa de ter algo para dizer. Porque é esse algo que sustenta todos os eventos e todas as decisões tomadas pelos personagens ao longo da história. E isto acontece tanto num filme artístico, alternativo ou de culto, como num filme popular de Hollywood. McDonald dá o exemplo de ET, em que a armadura se desenvolve em redor da ideia: “Aprender a compreender como as outras pessoas se sentem”, ou a armadura de “Iron Giant” que sintetiza como “Tu és aquilo que escolheres ser". Talvez mais interessante seja a ideia de que a armadura não é algo abstrato, veja-se o excerto:

“What is an armature, then, when talking about story craft? It is what you want to say with your piece. I was once talking to a friend who was complaining about a producer wanting

to change a scene in his script. My friend was angry because the change had nothing to do with his “theme.” He said, “My theme is competition. And the change has nothing to do with competition!” I didn’t say anything at the time, but my friend was confused. There

is an old joke about marriage that goes, “Marriage is not a word, it’s a sentence.” It’s the same with theme. My friend had nothing to say about competition. “Competition” is not a theme. A theme (or armature) might be, “Competition is sometimes a necessary evil.” Or, “Competition leads to self destruction.” Saying that your theme is competition is like saying your theme is “Red.” It really says nothing at all.”

No fundo, é aquilo que devemos procurar em qualquer Livro ou Filme. Ler apenas para matar o tempo, sem objetivo nem foco, sem nada que no final possa sentir-se como “aprendi algo” não é entretenimento, mas perda de tempo. Ir do ponto A ao ponto B, de carro, avião ou jato, com o personagem X, Y ou Z. Se o autor não tem nada para dizer, então também não temos tempo para o ler.

3. McDonald escreve todo um capítulo desfasado no tempo, parece tirado dos anos 1990, sobre género, sobre supostas diferenças entre Homem e Mulher que no fundo são diferenças entre Estímulos Físicos e Estímulos Emocionais. Para o efeito dá um exemplo belíssimo, retirado de Saving Private Ryan, a inicial com o desembarque na Normandia.

“Quando a sequência abre, Tom Hanks está com tremores, uma indicação externa da sua condição emocional interior. Outros homens, nos barcos Higgins, começam a vomitar devido a enjoo e à tensão nervosa. Antes de um tiro ser sequer disparado, já nos sentimos inquietos enquanto público. Há uma sensação de pavor. 

Quando os barcos atingem a praia, os homens são inundados de balas. Quantas vezes já vimos pessoas serem mortas no cinema? Porque é que estas mortes parecem afetar-nos mais do que nos restantes filmes? 

É porque tínhamos a noção de como estes homens se sentiam antes de morrerem — do seu terror abjeto.”

O filme cria um ambiente realista, no sentido em que a componente emocional alimenta a componente física, impactando o espectador sem que este perceba porquê. É como a história que nos contam de um acidente, quando é sobre alguém que desconhecemos e quando é sobre alguém que nos é próxima. O facto de nos aproximar-mos daqueles soldados, por via da sua fragilidade, torna-os mais próximos, mais humanos, familiares, fazendo-nos preocupar, e com isso impactando toda a sequência.

4. A importância de dizer sempre a verdade, ou de seguir a lógica dos factos, sem cair na tentação de subverter o que se conta, porque dá jeito, ou porque precisamos de manter um personagem ou parte da história a funcionar. Se alguém chega a uma cave escura, e em vez de ir chamar outra pessoa ou fugir, decide entrar às escuras, percebemos que é tanga e desligamos. A verdade é aquilo que a história pede em cada momento. Quando mentimos, para McDonald estamos a usar tinta visível, porque as pessoas percebem que estamos a mentir, e tudo se torna mais frágil. Este ponto liga-se à sua outra ideia de que o escritor não é verdadeiramente o mestre da construção das histórias:

“I often have spoken to writers who say the reason they like writing is that they have so much power. If you want it to snow, you can make it snow. Or if you want to make it sunny, you can make it sunny. You can do whatever you want. You are a master of the universe. Guess what—that is not so. You are a slave to your story, not a master. Your characters, places, scenes, and sequences must be built around the armature.”

5. Um dos últimos exemplos que gostei, e não posso replicar aqui completamente, é o modo como nos dá a ler um diálogo, e este parece interessante, mas algo inócuo, e depois nos diz que um dos personagens sofre de uma doença terminal, e nos pede para reler. Aí percebemos a força imensa do sub-texto. O modo como os diálogos carregam tanto mais poder quando suportados de um contexto que lhes dá sentido, que faz o recetor explodir significados em múltiplas direções, conseguindo antecipar o que vai ser dito a seguir, mas mais importante, conseguindo identificar em concreto a emoção que sustenta cada palavra. Isto é algo amplamente discutido no livro de McKey “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016).

"White Face" (2001) escrito e realizado por Brian McDonald. Uma pequena pérola.

Para fechar, deixo a nota para o exercício proposto, com McDonald a imprimir todo o guião de uma curta sua, escrita por si, a pedir-nos para a ler duas vezes e depois encetarmos a discussão que faz da mesma. Podem ver o filme realizado pelo próprio, "White Face" (2001). Deixo apenas a constatação que mais pessoas lhe fazem quando acabam de ver o filme, de que "tudo deve ter surgido de improviso". Lendo o guião, e depois o desmontar dos atos do filme e subtextos, percebe-se o quanto de racional e previamente planeado foi posto na subestrutura que suporta o pequeno filme. 

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