janeiro 27, 2022

A Moral do Cão

A propósito de "O Poder do Cão", vi primeiro o filme de Jane Campion (2021) e li o livro de Thomas Savage (1967) depois, das duas vezes não funcionou, não consegui encontrar nem sentir aquilo que tem conduzido uma maioria de pessoas a nomear este o melhor filme do ano ou o livro como uma das melhores redescobertas literárias dos últimos anos. Assumo que o tema é extremamente relevante e que a sociedade está hoje muito mais preparada para compreender um livro que saiu em 1967, mas o tratamento realizado deixou-me com demasiadas dúvidas sobre a eficácia da comunicação narrativa por causa da sua indefinição moral. Para explicar o problema terei de dar conta da história, por isso se não leram ou viram o filme fiquem por aqui.

A capa da primeira edição do livro, de 1967, e o poster da versão cinematográfica de 2021.

SPOILERS

Falarei do filme e livro como um objeto apenas, uma vez que ambos são dotados de qualidades estéticas elaboradas e próximas. O filme pela excelência da cinematografia e performance dos atores. O livro pela escrita e detalhe psicológico. Na forma, o único problema que identifico é já ao nível narrativo, com a estrutura causal a ser minimal em ambos o que acaba contribuindo para o problema geral que identifico a seguir.

Assim, temos um rancho no meio dos EUA, em Montana, no qual vivem dois irmãos adultos, servidos por duas cozinheiras e um grupo de homens que ajuda na lida do rancho. Os pais dos irmãos foram viver a aposentação para a cidade, supostamente para terem melhor qualidade de vida nos seus últimos anos. A família é muito rica e respeitada por todos, incluindo o mundo da política. A história centra-se nos dois irmãos, dando conta de um, Phil, muito inteligente, mas mau, e outro, George, menos inteligente, mas esforçado e bondoso. 

Phil considera-se acima de todos, do irmão, dos pais, dos trabalhadores, dos médicos, dos políticos, para ele todos são ralé, incapazes de pensar, de ver mais além, pessoas que merecem todo o seu desprezo, indo por vezes além disso, atacando-os psicologicamente para os diminuir e destruir interiormente. Consegue fazê-lo com o médico da vila que se sente desmoralizado com a vida que leva, a ponto de se suicidar, e depois com a mulher deste, que viúva ousa casar com o irmão George. 

Este comportamento de Phil é o motor de toda a história, e por sua vez explica a opção de Savage e Campion pela estrutura causal minimal que fala muito pouco dos restantes personagens, não abrindo qualquer espaço a potenciais causas ou explicações da irascibilidade de Phil. O ódio de Phil parece ser algo inato, quem o rodeia não precisa de lhe dar motivos para o seu ódio, ele simplesmente odeia tudo e todos.

E aqui surge o problema. Como isto é uma história, para tudo tem de existir uma causa, as coisas não podem simplesmente ser, ou ter nascido assim. O filme e o livro apresentam como potencial causa do comportamento aquilo que está definido na literatura da psicologia como “homofobia interiorizada”, ou seja, o ódio da própria homossexualidade que se pode manifestar numa série de comportamentos. Phil sente ódio pela sua condição, e esse ódio manifesta-se na relação com todos os outros à sua volta. Os graus deste ódio podem ser variáveis, no caso do Phil está perto dos extremos. Mas aquilo que Savage e Campion não dizem, porque optam pelo tal minimalismo, é que esse ódio não é inato, esse ódio é criado pela cultura em que se cresce. Uma cultura fortemente masculina como a do Oeste Americano terá conduzido muitos homens, e mulheres, a reprimir intensamente a sua homossexualidade, e com isso, a destruir a sua própria condição de existência, a sua identidade e autoestima, com múltiplas consequências distintas e extremas.

Assim, esta história não só pede que encontremos a explicação do comportamento em duas ou três cenas, pouco ou nada explícitas sobre a condição sexual de Phil, mas pede ainda que imaginemos tudo aquilo que o fez chegar àquele estado. Embora dê uma ajuda com o filho da viúva, Pete, que sendo também homossexual, é duramente castigado ao longo da história por essa condição, servindo de analogia a Phil.

Se parássemos a reflexão aqui, poderíamos dizer que o trabalho de Savage e Campion tinha sido magnífico, porque nos teria obrigado a refletir sobre os efeitos das nossas sociedades machistas de uma forma muito hábil. O problema é que aquilo que não é dito exige do espetador respostas, tendo este de partir à procura delas.

Pete assassinou ou não Phil? 

Se sim, fê-lo para vingar o pai, ou para proteger a mãe? Se para proteger a mãe, terá ele também assassinado o pai alcoólico que não dava suficiente apoio à mãe, já que foi ele que o encontrou na corda e a cortou? E naquela imagem final, em que Pete olha para George agarrado à mãe, não estará ele a pensar como vai a seguir eliminar George? Ou seja, será Pete um assassino em série? Faria sentido, como sucedâneo da maldade de Phil, o seu mentor, agora num estado ainda mais agravado.


Pete não assassinou Phil, foi tudo uma coincidência?

Phil era demasiado mau, e mereceu a morte violenta que o antraz produz por tudo aquilo que infligiu aos outros. Mas se assim é, então a explicação pelo lado da sua homossexualidade não vale nada. Ele não pode ser simultaneamente filho do mal social e pai desse mal. Ou pode, se quisermos passar a ideia de que todo o mal na sociedade deriva de pessoas homossexuais reprimidas!


Isto não tem nada que ver com deixar um final em aberto, algo que é normalmente usado para colocar a audiência a refletir sobre o que se conta. O problema é que deixar questões abertas não é o mesmo que abdicar de expressão autoral. Ou seja, ambos, Savage e Campion, abdicam disso, não se posicionam nunca moralmente face a Phil. Apresentam-no a partir de um olhar neutro, sem qualquer crítica ou justificação para o que faz, acabando a criar uma narrativa que querendo ser uma crítica contundente à sociedade, resulta moralmente indefinida.

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