fevereiro 26, 2022

Composição em anel na arte narrativa

"Three Rings: A Tale of Exile, Narrative, and Fate" (2020) é um trabalho académico experimental que mistura memórias, crítica, clássicos e teoria narrativa. Conhecia Daniel Mendelsohn de um anterior trabalho de memórias criado a partir da estrutura de Homero, "Uma Odisseia. Um pai, um filho e uma epopeia" (2017) do qual gostei particularmente. Neste seu mais recente trabalho criou uma espécie de sucessor, realizando um trabalho maior de auto-crítica e análise do que foram as suas obras anteriores de memórias, e essa ideia de sucessão fica desde logo patente pelo trabalho de análise que dedica a "Les Aventures de Télémaque" (1699) em que François Fénelon tentou escrever uma continuação da "Odisseia".

A obra resultou de um conjunto de seminários dados na Universidade de Virginia, nos quais Mendelsohn apresentou reflexões sobre a crítica de obras narrativas. O livro vem dividido em três grandes capítulos que não tendo o mesmo nome do subtítulo, a esse correspondem: exílio, narrativa, e destino. 

No primeiro, começa com as memórias de familiares no exílio que depois conjuga com o exílio de Erich Auerbach, o académico judeu alemão que se viveu obrigado a exilar em Istanbul para fugir do nazismo, onde viria a criar o seu imensamente referenciado legado dos estudos da crítica literária, "Mimesis: The Representation of Reality in Western Literature" (1946).

No segundo, introduz "Les Aventures de Télémaque" que aprofunda e usa para dar conta do modo como a técnica narrativa de "Composição em Anel" funciona, técnica que tinha sido explicada no primeiro capítulo, como se pode ver aqui:

“the insertion within one story of other stories, the flash backward or forward in time in order to give depth and complexity to the primary narrative (..) The technique is known as ring composition. In ring composition, the narrative appears to meander away into a digression (the point of departure from the main narrative being marked by a formulaic line or stock scene), although the digression, the ostensible straying, turns out in the end to be a circle, since the narration will return to the precise point in the action from which it had strayed, that return marked by the repetition of the very formulaic line or scene that had indicated the point of departure (...)

The material encompassed by such rings could be a single self-contained digression or a more elaborate series of interlocked narratives, each nested within another in the manner of Chinese boxes or Russian dolls (...)

THE BEST-KNOWN EXAMPLE of ring composition in Western literature is the carefully prepared and touching passage in Book 19 of the Odyssey in which the hero is recognized by his old nurse Eurycleia.”

Assim, Mendelsohn explica como Fénelon criou uma história dentro de outra, começando num ponto vazio desta e terminando no exato ponto de recomeço. Ou seja, em "Odisseia", Telémaco sai de cena no final do Livro IV e só volta a surgir no Livro XV. Fénelon inicia as "Aventuras de Telémaco", no final do Livro IV, e termina exatamente no ponto em que Homero volta a pegar em Telémaco, ou seja no momento de encontro entre Telémaco e Ulisses. A importância deste enquadramento narrativo circular é que atribui significado ao desvelar das aventuras que não acontecem como mera série de incidentes sem fim, mas acontecem com um propósito proporcionado pelo círculo. Mendelsohn acaba por depois, quase inevitavelmente, evocar Proust, para dar conta de um dos maiores anéis narrativos de sempre criado entre o primeiro tomo e o último de "Em Busca do Tempo Perdido" (1913-1927).

Por isso, quando chegamos ao capítulo final, as questões de "destino" tornam-se inevitáveis pois é este que atribui, por último, significado a qualquer experiência. Aqui Mendelsohn evoca Sebald, em particular e como não podia deixar de ser, "The Rings of Saturn”. Os livros de Sebald, talvez mais ainda do que Homero ou Proust, dão-se claramente a este modelo de composição, porque fragmentam não só a narrativa, como a própria realidade, propondo deambulações e digressões que nos fazem sentir perdidos ao longo de toda a leitura, sem respostas nem soluções, obrigando-nos a indagar interiormente sobre a ligação de tudo que Sebald nunca chega a oferecer-nos.

O final do livro discute estas oposições — Homero e Sebald — no uso do anel narrativo, atravessando as questões do exílio ao destino, evocando o que poderia ter acontecido se Auerbach nunca tivesse ido para Instambul, e acaba a deixar aberta a pergunta: existirá mesmo "​a pro­found, almost super­nat­ur­al con­nect­ed­ness between events” não só como defende a composição em Anel, mas no todo daquilo que somos?

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