dezembro 26, 2020

Design de Narrativa em Gabriel García Márquez

"Crónica de uma Morte Anunciada" (1981) pode ler-se como crónica, relato de eventos ocorridos, como o próprio título sugere, mas se melhor analisado poderemos ver que é um trabalho de narrativa experimental, como muito bem identifica Jane Alison na sua análise em "Meander, Spiral, Explode" (2019). Alison diz-nos que Márquez não conta uma narrativa linear, cronicando os eventos na sua ocorrência cronológica, mas antes o faz por meio de uma narrativa radial, expondo múltiplos elementos ao redor do evento e em direção ao clímax (ver imagem abaixo). À medida que ia lendo, fui concordando com Alison, e se tentei em parte compreender porque Márquez o fez, centrei-me mais em tentar perceber porque funciona para nós enquanto leitores.

Estrutura narrativa radial, uma proposta de Jane Alison

Se o relato dá conta de um assassinato consumado, logo nas primeiras páginas ficamos a saber: quem morreu e quem assassinou, assim como quando e porquê; ficando pouco para atiçar a curiosidade de quem lê, e no entanto seguimos atrás de Márquez sem qualquer problema, lendo sofregamente tudo, tentando entrar na cabeça de cada personagem que nos propõe, tudo para descobrir mais e mais sobre o "como"; porque é apenas isso que nos falta para fechar a história que se conta.

Mapa dos eventos de "Crónica de uma Morte Anunciada", criado pelo internauta JJ Marquete. Aqui podemos ver como todos os personagens e todos os eventos se ligam de forma centrípeta em relação à personagem principal de Santiago Nasar, o morto.

Enquanto lia, e tendo em conta o design da narrativa, fui-me sentido como no meio de uma pequena aldeia, ouvindo tudo e todos, aprendendo mais e mais sobre o como aconteceu. O crime é algo que nunca para de nos atrair, por mais que a nossa consciência tente dizer-nos que não nos diz respeito, é difícil passar ao lado de um acidente sem tentar olhar. Mas não é pela morbidez, na verdade o mesmo acontece quando o acidente não envolve feridos ou mortes, como um simples assalto. Por isso, o que temos é no fundo uma perturbação do estado das coisas, do padrão de normalidade, e a nossa ânsia ativa-se para perceber o que produziu essa alteração no padrão: o quê, quem, quando, porquê e claro como.

Inevitavelmente, isto prende-se com a nossa insaciável vontade de aprender, porque, evolutivamente, sobrevivemos melhor quanto melhor estivermos preparados, não só para lidar com os problemas, mas também para os antecipar e prever, medindo o alcance das suas consequências e evitando os seus potenciais danos.

E é disto que Márquez se aproveita, como no fundo aproveitam as histórias que se contam sempre, mas neste caso Marquez torna essa nossa avidez muito mais evidente porque poderíamos dizer que já sabíamos tudo o que havia para saber, contudo verificamos que assim não é, que à medida que as pessoas vão falando, vamos apreendendo dados desconhecidos sobre o sucedido e isso mantém-nos engajados, tentando encaixar os novos dados no modelo que já construímos sobre o que aconteceu e tentando compreender se se altera ou não a nossa perspectiva. Como se estivéssemos a tentar chegar a uma espécie de certeza absoluta sobre o sucedido. Enquanto o criador conseguir apresentar novos dados sobre o evento que possam de algum modo transformar o modo como pensamos que tudo aconteceu, a nossa atenção mantém-se e o interesse não desaparece.

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