"História da Guerra do Peloponeso" foi escrito no século V a.C por Tucídides, sendo por isso mesmo um registo histórico de incomensurável valor, mas é também um marco da História enquanto disciplina académica. Neste último sentido, fez-me compreender que apesar de na última década me ter dedicado a ler mais e mais História, na verdade continuo longe da mesma, em termos académicos. Interessam-me as histórias sobre a História, não me interessam tanto os relatos descritivos, mesmo que mais fidedignos ou verdadeiros. Não me move chegar “à verdade”, move-me mais a ideia de que aquilo que se conta é baseado numa realidade. Desde logo, porque mesmo num livro tão descritivo, tão emocionalmente neutro e objetivo, é possível denotar viés a ponto de hoje alguns historiadores o classificarem mesmo como apenas literatura. Claro que falo de um ponto de vista externo, não leio estas obras para documentar a minha investigação, se assim fosse falaria de modo distinto. Como leio apenas pelo prazer de ler, esse é maior quando a História usa o melhor da arte narrativa para chegar a nós, mesmo colocando em causa parte da sua factualidade que aceito bem quando é feito por via da especulação, mas não tanto quando pela mera invenção.
Não falo apenas dos já clássicos romances históricos, falo dos mais recentes divulgadores de ciência — Orlando Figes, Simon Sebag Montefiore, Simon Schama, Jared Diamond, Yuval Noah Harari, Jeremy D. Popkin, Arthur Herman, Mary Beard, Edward Wilson-Lee, Paul Kriwaczek, Irene Vallejo, Matthew Gabriele — , que tem feito um excelente trabalho de composição dos factos com a arte de contar histórias. Aliás, talvez o melhor exemplo de tudo isto seja o último trabalho monumental (1344 páginas) de Simon Sebag Montefiore, “The World: A Family History” (2022) em que este dá conta da História a partir da perspetiva das famílias dos seus principais atores. Ainda não o li, mas interessou-me desde logo por tudo aquilo que espero que nos consiga oferecer em termos narrativos, já que não existe narrativa sem relacionamento humano e a família é o núcleo dinâmico de toda a relação humana.
Relativamente a "História da Guerra do Peloponeso", é um registo muito cru do que se passou, ou terá passado numa guerra entre Atenas e Esparta, entre 431 a.C. e 404 a.C., em busca do domínio da região, uma guerra que envolveu múltiplas cidades-nação da região grega. Durou 27 anos porque as alianças entre as cidades — Liga do Peloponeso liderada por Esparta e a Liga de Delos liderada por Atenas — se foram alterando no tempo. Tucídides termina o seu relato no 21º ano, não se sabendo porquê, mas sendo a causa provável a sua morte, por isso não esperem, como eu esperei, chegar a um fechamento, a uma discussão analítica do todo. Existem alguns quadros centrais nesta História, facilmente identificáveis ¬e que fazem parte hoje do conhecimento geral — A ascensão de Atenas; Discurso de Péricles; A Peste em Atenas; Debate de Mytilene; ou a Expedição Siciliana. Politicamente, Atenas vivia sob uma democracia, do tipo direto, a primeira de que temos registos, enquanto Esparta era dominada por uma oligarquia formada pelos guerreiros de elite. Se o objetivo era dominar a região, naturalmente a diferença de modo de governo tornava impossível o convívio. Assim, e se o livro é grandemente focado nos movimentos militares e batalhas, ao longo do texto Tucídides vai apresentando um conjunto de princípios que sustentam o que se está a passar, e que nós sem muito trabalho conseguimos continuar a identificar nas guerras que ainda hoje, passados 2500 anos, continuam a surgir.
No meio do todo, e apesar do que disse antes, surpreendeu-me a disciplina de Tucídides na criação de um relato realista, altamente objetivo e detalhado, seguindo fielmente a cronologia dos eventos. Surpreende porque contrasta com todo o universo mitológico assente em fantasia dessa época, e anteriores como os discursos que podemos encontrar nas civilizações de Babilónia e Antigo Egipto. Demonstra uma vontade de manutenção da realidade, como espécie de manutenção de sanidade por forma a elevar a racionalidade. Contra, temos um apego excessivo a Homero e a Tróia que acabou fazendo-me fez questionar as múltiplas referências que defendem que essa nunca aconteceu.
Ainda assim, não devemos surpreender-nos excessivamente pois nos 3 ou 4 séculos que envolvem a escrita desta obra, viveram, e escreveram relatos que chegaram até hoje, nomes como: Anaximandro, Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão, Aristóteles, Eurípides, Hipócrates. Ainda assim, e nomeadamente depois de ter lido sobre todo o processo de manutenção destas obras escritas pela mão de Irene Vallejo, não consigo parar de me surpreender como foi possível manter um livro tão longo praticamente intacto até aos dias de hoje.
Sem comentários:
Enviar um comentário