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outubro 09, 2021

O Mapa do Conhecimento

Adorei a viagem proporcionada pelo livro "The Map of Knowledge" de Violet Moller. A obra pode não ser perfeita, podem existir problemas e erros, mas tendo em conta o que se pretendia, uma visão geral sobre a travessia do conhecimento durante a Idade Média, e não uma discussão sobre a veracidade histórica ou importância dos conceitos e teorias, a obra é muito conseguida. A sua leitura oferece-nos um enquadramento do registo e movimento do conhecimento ao longo de mais de 1000 anos, ajudando a compreender melhor certos lugares, os seus rituais e os seus personagens. Para além disso, no final, emerge algo ainda mais importante, o modo particular como se cria ciência, as suas necessidades e condições para o florescimento.

outubro 05, 2021

"Mil Cérebros" (2021), sem Emoção

"A Thousand Brains: A New Theory of Intelligence" (2021), tinha tudo para ser um grande livro, acaba por ser mera montra de ideias, e algumas delas com sérias deficiências. Apesar disso, a teorização proposta por Jeff Hawkins é interessantíssima, só requer que se leia com uma boa bagagem sobre o cérebro, consciência e emoção por forma a garantir suficientes competências ao pensamento crítico necessário à leitura. Aliás, essa mesma bagagem acaba por se revelar em falta em Hawkins o que responde por alguns dos problemas da sua discussão. Hawkins é uma pessoa peculiar, foi capaz de fundar a Palm em 1992 e criar o antecessor do smartphone, mas ao mesmo tempo nunca conseguiu integrar-se na academia, justificando que esta nunca foi capaz de compreender a sua visão. Mais recentemente fundou a sua própria empresa de neurociências e IA, a Numenta.

agosto 16, 2021

A dúvida científica como certeza individual

Depois do responsável de um partido ter vindo dizer que não se tinha vacinado porque não tinha informação, de que com a vacina ou sem ela os sintomas de COVID seriam os mesmos. Depois, de uma manifestação anti-vacinas, em Odivelas, com dezenas de pessoas gritando contra o diretor da campanha de vacinação palavras como "assassino". Descubro hoje que o principal site internacional de suporte de dados contra as vacinas, com milhões de visitas, é obra de uma pessoa apenas, uma californiana que diz ter uma filha que sofreu efeitos secundários após a toma de uma qualquer vacina em 2019.

agosto 11, 2021

A anomalia anti-existencial

"A Anomalia" foi premiado com o maior prémio francês de literatura, o Goncourt em 2020, que lhe deu notoriedade, mas sendo um prémio elitista raramente os seus premiados puderam apresentar-se ao público como tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares, como foi anunciado já em maio deste ano. Por outro lado, as reações nas redes não seguem esta aparente unanimidade, já que os comentários se dividem entre a paixão e o desprezo. Uns seguem o elitismo do prémio, reverenciando a inteligência do romance, outros desacreditam o prémio, catalogando-o de verdadeira anomalia. Do meu lado, li-o como comédia social que fala de temas sérios mas que não se quer levado demasiado a sério. Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que um dos personagens do livro é um escritor que também escreveu um livro chamado "A Anomalia", e enquanto tradutor já traduziu “À Espera de Godot" para klingon.


julho 30, 2021

“The Frontiers of Knowledge" (2021) de A.C. Grayling

Publiquei ontem a resenha do livro “The Frontiers of Knowledge" (2021) de AC Grayling no n. 10 do Journal of Digital Media & Interaction, a revista científica do DigiMedia. Na resenha dou conta das abordagens seguidas por Grayling, contudo aqui quero aproveitar para dar conta do quanto me tocou pessoalmente, nomeadamente a escolha que Grayling fez na seleção das 3 áreas de fronteira: a física, a história e a psicologia. O facto de ter selecionado 3 áreas centrais que acompanho, colocou-me em total sintonia com o autor, fazendo com o que o livro se tivesse tornado para mim numa das leituras mais instigantes da última década. Se tiverem ficado com curiosidade leiam a resenha!

“The Frontiers of Knowledge. What We Know about Science, History and the Mind” (2021) de AC Grayling


junho 27, 2021

“Project Hail Mary” (2021)

Andy Weir conseguiu novamente. 10 anos depois do brilhante trabalho de especulação científica realizado em “The Martian” (2011), localizado em Marte, traz-nos agora “Project Hail Mary”, localizado no sistema planetário de Tau Ceti, um sistema a 12 anos-luz do nosso sistema Solar, e onde se tem especulado sobre a existência de super-Terras, planetas habitáveis. “Project Hail Mary” segue a mesma fórmula de “The Martian” elevando a amplitude nomeadamente pela exposição à volta da engenharia e ciência — astrofísica (trabalhando intensamente a relatividade), cosmologia, química, biologia, evolução e linguística. Pode-se dizer que o livro é feito de problemas de engenharia que obrigam a evocar muita ciência complexa criada ao longo dos últimos 100 anos. E se o protagonista é um professor de ciências do secundário, o livro acaba mesmo parecendo um semestre de aulas transpostas para uma temporada televisiva de aventuras espaciais. Não se espere uma obra de grande literatura, espere-se antes uma grande obra de comunicação de ciência, com emoção, mas especialmente muito sonho à volta do cosmos.

maio 22, 2021

"Walden Two" de B. F. Skinner

B. F. Skinner foi professor de psicologia, recipiente de múltiplos prémios e distinções pelo seu trabalho, tendo ficado na história como um dos maiores defensores da abordagem behaviorista da psicologia na qual proporia o chamado "behaviorismo radical", uma proposta que vê os indivíduos como sistemas de comportamentos — respostas do humano a estímulos do ambiente —, em que tudo aquilo que sentimos é apenas reflexo da forma como nos comportamos. Deste modo Skinner acreditava que moldando o ambiente poderíamos moldar os indivíduos, acreditava na possibilidade da "engenharia do comportamento" por via da "engenharia cultural". O livro "Walden II" (1948) é um romance que segue o método socrático (investigação filosófica por meio do diálogo) e serve a apresentação destas engenharias com base numa comunidade utópica. Não é um grande romance, mas é uma excelente apresentação das ideias do autor, o que faz deste uma excelente leitura para quem se interesse pelo tema. 

maio 03, 2021

A Caverna dos Sonhos Esquecidos

"Cave of Forgotten Dreams" (2010) é um documentário de Werner Herzog sobre a Caverna Chauvet, no sul de França, que contém algumas das mais antigas imagens criadas por humanos (435), há cerca de 32.000 anos. O tom da voz de Herzog é bom e funciona bem na criação da experiência, já os seus comentários e as questões que coloca aos entrevistados deixam muito a desejar. Apesar disso, o documentário é poderosíssimo por nos dar a ver algo que está vedado ao público, mas mais do que isso, por nos aproximar imenso de algo que foi criado há milhares e milhares de gerações e se parece tanto com aquilo que continuamos a criar hoje. É quase espiritual...

abril 02, 2021

Porque emergem comunidades?

No seu livro "Blueprint: The Evolutionary Origins of a Good Society" de 2019, Nicholas A. Christakis aborda a questão da formação das sociedades de uma perspectiva evolucionária. A abordagem seguida por Christakis é científica, mas não experimental de forma direta. Ou seja, usam-se múltiplos métodos de análise indireta do objeto, que permitem construir inferências que depois suportam a argumentação geral. Mas não existe uma forma de aceder empiricamente ao objeto da discussão, ou de o testar de forma completamente isolada. Para uma parte da academia, isto deita por terra o interesse deste trabalho, e considera-o mesmo uma afronta. Do meu ponto de vista, e de uma outra parte da academia, isso é miopia científica. 

março 27, 2021

O nosso Movimento molda o nosso Pensamento

Barbara Tversky apresenta no seu último livro, "Mind in Motion: How Action Shapes Thought" (2019), uma teorização sobre a cognição, ainda que não completamente nova, arrojada. Defende que o nosso pensamento não é construído pela linguagem, mas pela ação, pelo movimento. Tversky diz-nos que usamos as palavras para descrever, mas na verdade a nossa mente constrói conceitos por via de imagens mentais criadas a partir da nossa ação sobre a realidade. Damásio tem falado bastante sobre estas imagens mentais, e sobre a implicação da emoção e do corpo nos processos de raciocínio, mas mais próximo ainda, é o trabalho de Benjamin Berger, no livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012), que defende, também, que não processamos a informação em modo de texto, mas por meio de imagens ou simulações mentais. Tversky dá um exemplo clássico, mas que todos nós podemos rapidamente intuir, e que passa pela enorme dificuldade que temos em descrever a cara de alguém em palavras. Isto, para Tversky, é um indício de que a nossa capacidade de pensar não acontece a partir de um processo mental textual algorítmico inato, como defende Chomsky, mas é antes produzida por via da nossa ação no espaço e tempo, pela nossa atuação interativa com o real que nos permite relacionar e construir mentalmente a realidade na nossa mente.

março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


fevereiro 26, 2021

A academia e o problema da mente-corpo

Rebecca Goldstein é uma académica da área da Filosofia, tendo começado a sua carreira no domínio da Física, acabaria por mudar-se para a Filosofia e seguir o ramo da Filosofia da Ciência. Isto é importante, porque este seu primeiro romance — "The Mind-Body Problem" (1983) — contém enormes traços autobiográficos. Um dos seu livros posteriores — "Incompletude: A Demonstração e o Paradoxo de Kurt Gödel" (2005) — dá conta da relação entre Godel e Einstein em Princeton, tendo-o lido antes, serviu-me aqui para compreender em muito maior detalhe o mundo e a cultura da autora. Mas, para primeira obra, o que verdadeiramente impressiona, não é o caráter conceptual,  é a audácia. A capacidade de criar uma voz familiar que não se acanha, que se expõe sem constrangimentos.

fevereiro 22, 2021

A resposta é: 42

Foi publicado há dias, 19 fevereiro, um artigo na Science sobre a crise ambiental ocorrida há 42 mil anos, motivada pela inversão dos polos magnéticos da Terra que produziu alterações no campo de forças que protege o planeta da influência de raios cósmicos. A equipa australiana, liderada por Alan Cooper e Chris S. M. Turney, batizaram o evento como “Adams event”, como homenagem a Douglas Adams que escreveu "The Hitchhikers Guide to the Galaxy" no qual inscreveu o nº42 como fonte da vida. Mas o mais importante são os três grandes efeitos referenciados: o desaparecimento de megafauna; a extinção dos Neandertais; e por último, e que mais me interessou, o surgimento das pinturas nas cavernas.

Imagem retirada do vídeo produzido pela Universidade Nova South-Wales, Sydney (ver abaixo)

janeiro 31, 2021

Platão versus Aristóteles

 “The Cave and the Light: Plato Versus Aristotle, and the Struggle for the Soul of Western Civilization” é uma obra de grande fulgor, de Arthur Herman, sobre a história ocidental da filosofia e da ciência, contada em pouco mais de 700 páginas e a partir de um simples conceito: todas as ideias dos últimos 2500 anos são o resultado de um debate continuado entre Platão e Aristóteles. Herman não defende que tudo dependeu deles, não faz deles deuses, mas diz antes que aquilo que forma a força a motriz da evolução da sociedade ocidental, assenta na constante oposição entre os que se sentem influenciados por uma visão do mundo platonista, e aqueles que se sentem influenciados por uma visão do mundo aristotélica. A obra tem sido alvo de alguns ataques, pelo conservadorismo do autor, mas quem quiser aproveitar o trabalho realizado, apoiado por uma boa escrita, encontrará aqui muito para aprender.

dezembro 19, 2020

Espinosa e a necessidade de Ser Especial

Terceiro livro de Yalom dedicado a romancear as ideias de um filósofo. Depois de Nietzsche em 1992 e Schopenhauer em 2000, em 2012 foi a vez de Espinosa. São três obras de elevado interesse pelo modo como facilitam a entrada na complexidade dos quadros teóricos de cada um destes filósofos. Por via do simples contar de histórias, Yalom traz de volta à vida os pensadores, permitindo-nos dialogar com eles. Não se espere obras de grande desenvoltura literária, o foco são as ideias e os criadores das mesmas, a literatura está aqui ao serviço. Mas em termos de apresentação e discussão teórica, Yalom impressiona, tornando simples e acessível o complexo. Ao contrário dos anteriores filósofos, nada tinha lido escrito pelo próprio Espinosa, apesar de por várias vezes me ter aproximado dele. Talvez por isso, por funcionar como descoberta de um novo mundo, foi dos três o que mais mexeu comigo.

Sinopse: Espinosa, judeu refugiado na Holanda, viveu uma vida de castigo e isolamento. Devido aos seus pontos de vista, foi excomungado da própria comunidade judaica de Amesterdão, e banido do único mundo que sempre conhecera. Apesar de viver com poucos meios, Espinosa produziu obras que mudaram o rumo da História.

Se não tinha lido antes Espinosa, tinha lido um outro texto que me serviu de comparativo e nomeadamente de filtro crítico, falo de "Um Bicho da Terra" (1984), um livro de Agustina Bessa Luís sobre Uriel Da Costa, o filósofo português, cristão-novo, que estudou na Universidade de Coimbra e depois emigrou para Amsterdão, no século XVI. Uriel da Costa viveu na mesma comunidade de Espinosa, morreu quando Espinosa tinha 6 anos. Desde já, dizer que é uma tontice dizer-se que Espinosa era português, e colá-lo na capa do livro ainda pior. O seu pai fugiu de Espanha para Portugal, e de Portugal para a Holanda, Espinosa nasceu em Amsterdão. Se é verdade que falava e escrevia inicialmente em português, isso não faz dele português. Mais, tendo em conta o facto de ter sido ostracizado por todos os países por onde passou, tendo de publicar sob anonimato, diria que Espinosa era sim um Cidadão do Mundo.

O livro de Agustina serviu-me então de filtro crítico porque quando ia a meio do livro de Yalom, surgiu a história de Uriel, de forma muito breve, e por isso voltei para ler o que tinha escrito sobre o livro de Agustina. Foi então que me apercebi que não só Yalom não dava conta da verdadeira importância da figura de Uriel, do seu legado filosófico, como se abstinha totalmente de ligar a sua personalidade e ideias às ideias de Espinosa. Foi então que me apercebi que Yalom pretendia apenas uma coisa, cultuar Espinosa. Para esse efeito não podiam ser apresentados elementos que ombreassem. Espinosa tinha de ser o primeiro e mais dotado de sempre naquela comunidade e no mundo. Repare-se no seguinte diálogo:

Espinosa: “o meu pai (...) falou-me da vossa elevada opinião sobre a minha mente — "inteligência ilimitada" — foram as palavras que ele vos atribuiu. Foram de facto estas as suas palavras? Ele citou-o correctamente?”

Rabi Mortera: “Sim, essas foram as minhas palavras”

Yalom segue um modo de novelização completamente oposto a Agustina, já que esta procurava acima de tudo um registo histórico para a posterioridade, sem exageros nem inverdades, enquanto Yalom não se preocupava com o que tinha de ficar por dizer, desde que conseguisse criar na mente do leitor a figura de uma espécie de Deus Filósofo, pronto a ser seguido pelo leitor. Com esta crítica, não estou a dizer que Espinosa não fosse uma mente brilhante e um filósofo profundamente dotado, mas continuava sendo um humano. Porque a diferença entre os dois livros, sobre Uriel e Espinosa, é a demonstração do primeiro de que não existem super-homens, mas que o conhecimento se constrói na senda de muitos antes de nós. Não nascemos ensinados, nem temos propriedades capazes de nos colocar do lado de fora da espécie. Construímos a partir daquilo que os outros antes de nós construíram. 

Yalom enfatiza múltiplas vezes que Espinosa teria uma inteligência fora do normal, que era alguém completamente sobredotado, alguém diferente de todos. Usa depois outras figuras de culto como Goethe, Kant ou Einstein para levar ainda mais longe o seu endeusamento. Repare-se que este tipo de endeusamento faz parte da nossa cultura ocidental, adorada principalmente pela cultura americana que se preza pela competição desenfreada. Se enaltecermos o individuo, em vez da teia de indivíduos que contribuí pequenos elementos para o todo, criaremos um maior sentimento de inveja, uma maior necessidade de dar o máximo, e pedalar sem parar. Repare-se nos seguintes casos:

Gutenberg: Inventor da prensa móvel, algo que sabemos há muito não ser verdade, já que existem imensos registos do seu uso muito anterior na Ásia.

Darwin: Criador da Teoria Seleção Natural. A sua teoria surgiu ao mesmo tempo que a de Alfred Wallace. E o que isso no diz é que o conhecimento criado pelo ser humano até àquele momento tornava evidente aquela teorização. Mas antes tivemos Lamarck, e muito antes Lucrécio.

Einstein: Criador da Teoria Geral da Relatividade. Sem os génios de Hendrik Lorentz ou Henri Poincaré Einstein nunca teria chegado à mesma.

Edison: Inventor da Lâmpada Elétrica. Na verdade foi o criador da primeira lâmpada comercializada, porque a lâmpada elétrica existia já em múltiplos outros experimentos.

Lumiére: Inventores do Cinema. Pode-se dizer que foram os primeiros a fazer uma sessão paga de cinema, nada mais.

Jobs: Criador da Interface de Utilizador Gráfica (GUI). Antes tinha sido desenvolvida pela Xerox, onde trabalhava Alan Kay, e antes disso por Ivan Sutherland na U. Stanford.

Esta lista poderia continuar infinitamente, é uma pequena amostra que dá conta do facto de nenhum ser humano ter qualquer comunicação privilegiada com Deus ou qualquer realidade alternativa. Criamos e inventamos apenas aquilo que é possível em cada momento, e o que é possível é limitado pelo que existe em cada um desses momentos. As disrupções ou saltos revolucionários, não passam de “wishful thinking”, porque nunca vamos além da incrementação. Se realmente fossemos capazes desses saltos no conhecimento, não só já teríamos evoluído muito mais, como poderíamos encontrar momentos de invenção na história inexplicáveis, buracos negros de conhecimento. No entanto não existem momentos desses documentados em lado algum. Tudo o que inventámos, seguiu o rumo do conhecimento que existia, porque como nos diz Lucrécio: "Nada pode ser criado do nada."

Contudo, na nossa sociedade ocidental ao contrário da oriental, aquilo que mais queremos ouvir são histórias sobre indivíduos que fizeram a diferença, que foram heróis, melhor ainda, super-heróis. Alcançaram o inalcançável. Lê-se a certa altura, no livro de Yalom: “O meu professor afirmou que Spinoza foi o homem mais inteligente que alguma vez andou na terra.

Mas, é o próprio Espinosa que o diz, aqui no livro de Yalom:

“Portanto, também é verdade que Deus não escolheu o homem para ser especial, para estar fora das leis da Natureza. Essa ideia, creio eu, não tem nada a ver com a ordem natural, mas vem antes da nossa profunda necessidade de sermos especiais, de sermos imperecíveis.

Os judeus afirmavam-se como o Povo Eleito, Escolhido ou Especial para forçar a sua crença nas massas. Mas Espinosa nunca aceitou tal ideia, desde logo porque nem sequer nas escrituras vem inscrito tal. Mas acima de tudo porque Espinosa acreditava que tudo era Natureza e que nesta não cabe o Especial. Tudo vem da Natureza, tudo volta à Natureza. Esta ideia de Especial, de Culto do indivíduo liga-se com a tal necessidade de se manter à superfície da Terra para todo o sempre. Só sendo-se Especial não se será esquecido. Mas como dizia Epicurus,

“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não existe; e quando a morte existe, não existimos nós. Todas as sensações e consciências terminam com a morte e, portanto, na morte não há prazer nem dor. O medo da morte surge da crença de que na morte existe consciência.”  
"Eu não era, fui; já não sou, já não me importo."

No fundo, por mais impressionante que Espinosa tenha sido, bebeu bastante no exemplo de Uriel da Costa, assim como foi buscar muitas das ideias a Epicuro, Lucrécio, Aristóteles e tantos outros. Aliás, um dos focos do livro é exatamente a Biblioteca de Espinosa com mais de 150 volumes, para quem quase nada tinha, o que ele mais prezava era o legado de quem o precedeu, a partir do que podia continuar a debater e a construir as suas ideias.

“Porque ninguém, na realidade é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão” Espinosa in "Tratado Teológico-Político"

Esta minha crítica ao livro foi proporcionada pelo próprio livro, já que Yalom não se limita a falar de Espinosa, ele coloca o mesmo em confronto com o nazismo que bebeu nas suas ideias para criar a sua própria doutrina, subvertendo totalmente o legado de Espinosa. Os nazis não compreendiam como Espinosa poderia ter sido tão iluminado, imensamente respeitado por grandes nomes da história da Alemanha, e ao mesmo tempo ser judeu. Por isso, de forma execrável, fizeram uso do trabalho de Espinosa, dos seus argumentos sobre a religião e o judaísmo para atacar os judeus, mas colocando-se a si mesmos no lugar da Raça Especial.

"A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender a compreender, porque compreender é ser livre." Espinosa in "Ética"

Este trabalho de fusão entre a história de Espinosa e o nascimento da ideologia do nazismo levanta ainda uma outra questão que Yalom não discute mas é por demais evidente. À medida que Yalom vai romantizando o trabalho de Alfred Rosenberg, torna-se inevitável pensarmos sobre as razões por que não foi banida a obra de Houston Stewart Chamberlain? Se ela não tivesse chegado às mãos de Rosenberg, teríamos alguma vez chegado a ter um nazismo tão obcecado com a raça? Contudo, pouco depois, quando vemos os livros de Espinosa serem banidos pelos judeus e pelos cristãos, mesmo tendo sido publicados de forma anónima, a resposta torna-se óbvia. 


Para fechar o texto, dizer que o livro de Yalom pode não ser, ou não parecer, brilhante, mas tendo em conta tudo aquilo que nos dá a conhecer e o modo como nos instiga a refletir, por demais evidente no meu texto acima, torna-se difícil não recomendar a sua leitura. Para mim, foi essencial porque antes de voltar a tentar ler "Ética" (1677), vou seguir a recomendação de ler primeiro o "Tratado Teológico-Político".


Continuar a Ler:

Nietzsche, o psicoterapeuta, 7.2020

Schopenhauer por Yalom, 9.2020



dezembro 14, 2020

O esplendor das Redes Sociais

Estudos atrás de estudos [1,2] têm demonstrado a necessidade básica de vivermos em grupo, de partilharmos a vida com outros, de dar conta dos nossos amores, derrotas, dores, ganhos, sofrimentos e vontades. Muitos dos recentes estudos da Psicologia Positiva falam disso como condição essencial para a felicidade, para o bem-estar, mas vêm de trás, vêm dos primeiros estudos da psicologia social e da aferição das motivações humanas [3], levando em conta processos de comparação humana [4, 5] e de aprendizagem social [6] que vêm inscritos em nós à nascença. Mas o modo como vamos vivendo, em que o trabalho assume cada vez mais o lugar central da nossa vida, torna tudo isso complicado. O gráfico abaixo ilustra um conjunto de ideias sobre as quais vale a pena determo-nos.

"Who do we spend time with across our lifetime?", Esteban Ortiz-Ospina, dezembro, 2020

Por um lado podemos dizer que a ideia de que a vida são os amigos é muito sobrevalorizada, que tudo se resume ao parceiro, e em última análise, estamos mesmo sozinhos, nada a fazer. 

Por outro lado, julgo que aquilo que este gráfico nos diz, comparando-o com aquilo que a psicologia nos diz que precisamos, é que as Redes Sociais se tornaram na tábua de salvação deste século XXI. Este processo de individualização, destruição das comunidades alargadas, iniciado no século XX com a industrialização e desenvolvimento acelerados, foi conseguido sem uma destruição de todos nós graças ao suporte dos Mass Media que garantiam um fio de relação humana constante, produzindo a necessária estabilidade emocional. No século XXI fomos mais longe, individualizámos ainda mais, mas ao mesmo tempo criámos as redes sociais que nos permitiram abandonar os media de massas, para voltar à relação direta com pessoas, relação comunitária efetiva, ainda que por via de redes digitais.

É um gráfico riquíssimo para reflexão sobre o que somos realmente, que põe a nu muitas falácias sobre aquilo que acreditamos ser.



dezembro 12, 2020

Evidência científica no uso de Videojogos como tratamento de crianças

É interessantíssimo acompanhar o modo como a sociedade e a própria academia reagem aos videojogos, usando e abusando dos mais diversos discursos, mas no final deve valer-nos apenas e só a Ciência, os experimentos com observação empírica de causa e efeito. Uma coisa é analisar alguns jogos, entrevistar algumas crianças e pais, construir um conjunto de teorias, outra bem diferente é realizar testes rigorosos, ao longo de anos, minimizando a contaminação das evidências, para chegar a factos. Isto é algo com que podemos contar da parte da Food and Drug Administration (FDA), a agência que aprova os medicamentos nos EUA e que aceitou este ano, pela primeira vez, um videojogo como medicamento.


O "EndeavorRX" da Akili Interactive é o primeiro videojogo a passar todos os testes de uma agência de medicamentos para ser comercializado e prescrito como medicamento no mundo. A agência americana, a FDA autorizou que os médicos passassem a prescrever o EndeavorRX a crianças entre os 8 e os 12 anos de idade com Défice de Atenção, a chamada ADHD. Isto acontece apenas após a realização de ensaios clínicos realizados com mais de 600 crianças durante um período que durou 7 anos. Um dos múltiplos estudos realizados resultou em: um terço das crianças que já não apresentava vários dos problemas do défice de atenção após 4 semanas de uso do jogo, 25m por dia, 5 dias por semana.
"The EndeavorRx device offers a non-drug option for improving symptoms associated with ADHD in children and is an important example of the growing field of digital therapy and digital therapeutics." Jeffrey Shuren da FDA

Entretanto lembrei-me de um artigo que escrevi para a Eurogamer, no já longíquo ano de 2013 — Videojogos como instrumentos de controlo emocional Os benefícios da estimulação cognitiva — no qual teorizava sobre esta possibilidade. Na altura construí a teoria com base nalguns estudos sobre plasticidade cerebral e sobre o modo como os videojogos nos ensinam a lidar com o falhanço, e ainda na desconstrução do design de jogos como Super Mario e Legend of Zelda. Por isso, satisfaz-me muito saber que a FDA conseguiu chegar a evidências que demonstram isso mesmo.

Repare-se que na altura teorizei sobre assunto, mas tive o cuidado de dizer, e reforçar num artigo posterior aqui no blog, que se tratava de teoria sobre potenciais benefícios dos videojogos, e não provas ou estudos clínicos. Isto era bem diferente de apregoar "certezas científicas" com base em teorias, tal como ainda recentemente se pôde ver no caso, mais um, de Michel Desmurget. Ele dizia algo do tipo "os videojogos estão a tornar os nosso filhos menos inteligentes", e todos os media foram a correr ouvi-lo, quando na verdade Desmurget estava apenas interessado em promover o seu livro "A Fábrica de Cretinos Digitais - Os perigos dos ecrãs digitais para os nossos filhos" (2019). Numa das entrevistas publicada pela BBC, Desmurget respondia a uma pergunta desta forma:
BBC News: "Há estudos que afirmam, por exemplo, que os videojogos ajudam a obter melhores resultados académicos…"

Desmurget: "Digo com franqueza: isso é um absurdo. Essa ideia é uma verdadeira obra-prima de propaganda. Baseia-se principalmente em alguns estudos isolados com dados imprecisos, que são publicados em periódicos secundários, pois muitas vezes se contradizem.
Em uma interessante pesquisa experimental, consolas de jogos foram dados a crianças que estavam bem na escola. Depois de quatro meses, elas passavam mais tempo a jogar e menos a fazer os deveres de casa. As suas notas caíram cerca de 5% (o que é muito em apenas quatro meses!).
Em outro estudo, as crianças tiveram que aprender uma lista de palavras. Uma hora depois, algumas puderam jogar um jogo de corrida de carros. Duas horas depois, foram para a cama. Na manhã seguinte, as crianças que não jogaram lembravam cerca de 80% da aula em comparação com 50% das que jogaram. Os autores descobriram que brincar interferia no sono e na memorização."
Quando li a entrevista fiquei estupefacto. Como é que alguém que se apresenta como neurocientista diz coisas com toda esta certeza, mesmo na presença de tantos estudos contrários? Depois fui procurar artigos do autor e encontrei muito poucos. Encontrei um outro livro, mas que falava de dietas! Acabei por desistir, e na altura nem me dei ao trabalho de partilhar e desmontar a entrevista dele. Mas é apenas um dos muitos casos que servem para demonstrar que falar em "certezas científicas" não é motivo para correr a acreditar. Certezas é algo muito difícil de conseguir, precisamos de dezenas e dezenas de repetições, ao longo de muito tempo e com condições controladas, para poder chegar perto delas.

dezembro 05, 2020

A política por detrás da Universidade que mata a Curiosidade

Trago um conjunto de reflexões que me foram proporcionadas pela interação de argumentos apresentados por três livros: "The Professor's House" (1925) de Willa Cather, "Leonardo Da Vinci" (2017) de Walter Isaacson, e "A Mind at Play" (2017) uma biografia de Claude Shannon. Porque continuamos a lutar todos os dias? Porque nos sacrificamos? Porquê ter desejo, sentir dor e prazer. Porquê? Para quê? Para quê avançar na educação e construir uma sociedade altamente educada, capaz de proporcionar a si mesma grande conforto, quando tarde ou cedo acabará por colapsar, por razões internas ou externas, mas reduzida a escombros de onde outras terão de voltar a emergir quase do zero?


A resposta parece apontar para a desistência, um niilismo, dada a insustentabilidade de qualquer dos argumentos. Mas se isto nos toca no fundo, e agita o que pensamos e repensamos diariamente, sabemos que a resposta não pode ser o NADA. Algo em nós anseia por mais do que o nada, e procuramos conhecer o que existe para além desse nada. A resposta, parece estar na análise dos nossos antepassados, pessoas que encontraram respostas contra esse nada e que viveram segundo essas mesmas respostas.

Neste sentido, e por fruto do mero acaso, calhou ler "Professor's House" durante o tempo em que andava a refletir sobre a biografia de Leonardo Da Vinci, daí que tenha concluído que na nossa história nenhuma outra pessoa poderia ser melhor antídoto para o nada. Não porque deu respostas aos "porquês", mas exatamente porque quando olhamos para a sua vida percebemos que essa pergunta não faz sentido. Leonardo nunca se questionou porquê, passou toda a sua vida, até à morte, a questionar-se sobre o como. A sua curiosidade por saber como o mundo funcionava era infinita. Foi por isso mesmo que acabei concluindo que Leonardo não era um artista, mas um designer. A arte foca-se excessivamente nos porquês, enquanto o design está totalmente focado nos como. Esta mesma ideia é apadrinhada pela leitura da biografia de Claude Shannon, um engenheiro por natureza, com um espírito de "tinkerer", muito próximo do designer Leonardo, sempre em busca de respostas aos como.

Por outro lado, Willa Cather traz ainda para a discussão a pressão constante a que a Universidade está sujeita pela sociedade e seus políticos, no sentido de apresentar resultados quantificáveis e medíveis, justificadores do investimento público (repare-se que o texto é de 1925). Contudo ao colocarem esta pressão sobre quem investiga, retiram-lhe a essência, destroem-lhe a curiosidade e o engenho. O sujeito investigador, passa a questionar-se sobre o porquê de fazer o que faz, para quê? Sabe que é para melhorar a sociedade, mas sabe que isso é parte de um formalismo político. Dentro  de si, existe um sujeito, um indivíduo, e trabalhar para o suposto bem comum é relevante, mas não chega para apaziguar a constante interrogação interna. 
“Both, with all their might, had resisted the new commercialism, the aim to “show results” that was undermining and vulgarizing education. The State Legislature and the board of regents seemed determined to make a trade school of the university. Candidates for the degree of Bachelor of Arts were allowed credits for commercial studies; courses in bookkeeping, experimental farming, domestic science, dress-making, and what not. Every year the regents tried to diminish the number of credits required in science and the humanities. The liberal appropriations, the promotions and increases in salary, all went to the professors who worked with the regents to abolish the purely cultural studies. Out of a faculty of sixty, there were perhaps twenty men who made any serious stand for scholar (..) They were, moreover, the only two men on the faculty who were doing research work of an uncommercial nature, and they occasionally dropped in on one another to exchange ideas.” Willa Cather, (1925). “The Professor’s House”
Leonardo é hoje imensamente reconhecido pelas suas obras de arte, e no entanto aquilo que o manteve vivo toda a sua vida foram os seus cadernos, a sua investigação sobre o design do mundo — da água à anatomia, do voar aos engenhos militares. Nada do que fez nesses ramos teve qualquer valor para a sociedade, porque nada disso foi publicado em forma ou tempo útil, obrigando aos que o sucederam a terem de redescobrir tudo. Mas se olharmos ao caso de Claude Shannon, o responsável por todo o pensamento que sustenta aquilo que hoje designamos por Sociedade da Informação e Comunicação, nada do que fez alguma vez foi feito com o intuito de criar a Informática ou a Internet. Ambos, Leonardo e Shannon, moveram-se apenas e só pela mais pura e absoluta curiosidade, um é hoje imensamente admirado, o outro mudou o mundo.

Se continuarmos a obrigar os professores-investigadores universitários a focarem-se na produção de artigos em massa e na angariação de projetos apenas em função do retorno financeiro, por mais científicos que sejam, não só conduziremos estes professores-investidadores para o niilismo, matando a sua curiosidade, como os seus resultados não passarão de produtos em série, conduzindo a Universidade ao estatuto de simples fábrica, condenando-a, tarde ou cedo, ao colapso.

dezembro 01, 2020

Gramáticas da Criação (2001)

É um livro denso, com muita argumentação e contra-argumentação que requer uma contextualização que não é muito clara por se limitar a dizer que o livro surgiu das suas Gifford Lectures de 1990. Mas as Gifford Lectures não são umas quaisquer lições académicas, são seminários sujeitos a uma temática concreta: a Teologia Natural. Aliás foi nestas que William James apresentou também o seu famoso livro "As Variedades da Experiência Religiosa" em 1902. Ora a Teologia Natural procura provar a existência de Deus por meio filosófico, sem recurso ao sobrenatural. Assim compreende-se que aquilo que está em questão, em toda a discussão apresentada, não são os processos criativos artístico e científico convocados por Steiner, mas explicitamente a criação da existência humana.

Todo o livro é uma deambulação pelas ciências da linguagem, das humanidades e artes indo até às ciências naturais e exatas, para dar conta daquilo que é, ou podem ser, os processos de: Descoberta, Invenção e Criação. Tenho de dizer que em muitos momentos fiquei ali imerso, seguindo o seu pensamento, tentando captar, apreender e aprender. Contudo, quanto mais avançava no livro, mais certo estava de que nada daquilo conduziria a lado algum. Steiner dedica-se apenas e só a aprofundar ideias, a escavar conceitos em todas as dimensões possíveis, apresentando teias de possibilidades, mas nunca se chega à frente para tomar um caminho, para decidir o que quer realmente de tudo aquilo. 

“The Latin invenire would appear to pre-suppose that which is to be “found,” to be “come upon.” As if, to invoke the question underlying this study, the universe had already been “there,” had been extant for the Deity to find, perhaps to stumble upon. Turned to haughty paradox, this invenire is implicit in Picasso’s: “I do not search, I only find.” The tenor of discovery attaches to the Latinate verb when it first enters the English language towards the close of the fifteenth century (invention is thus a late-comer). Yet very quickly, the overlap between “finding” and “producing” or “contriving” becomes evident. After the 1540s, invenire can pertain to the composition, to the production of a work of art or of literature.”

(...)

“The aura of “feigning,” of “fabrication”—itself a term in the highest degree ambiguous—of “contrivance,” modulating into falsehood, is audible after the early 1530s. As the term ripens into currency, both spheres are present: that of origination, production and first devising on the one hand, that of possible mendacity and fiction on the other. ”

(...)

“As I noted, something within the deep structures of our sensibility balks at the phrasing and concept: “God invented the universe.” We speak of a major artist as a “creator,” not as an “inventor.”

(...)

“I have already cited the taboo on the “making of images” in Judaism and Islam. To create such images is to “invent,” it is to “fictionalize” in the cause of a virtual reality, scenes, real presences beyond human perception or rivalry (“I know not ‘seeming,’” says Hamlet in his rage for truth). Time and again, we will meet up with the artist’s sense of himself as “counter-creator,” as competing with the primal fiat or “let there be” on ground at once exultant and blasphemous. Is the lack of humour, so marked in the Hebraic-Christian delineations of a revealed God, instinct with the seriousness of creation? Invention is often thoroughly humorous. It surprises. Whereas creation, in the sense of the Greek term which generates all philosophy, thaumazein, amazes, astonishes us as does thunder or the blaze of northern lights.”

(...)

The taboo, always only partial and often circumvented, on the representation of the human person attaches to a uniquely subtle aesthetic of the ornament, of the mathematical logic and beauty of the geometric. Persian and Arab calligraphy are more than suggestive of algebra (itself, of course, partly of Islamic origin). Centrally, the strain of iconoclasm in Islamic sensibility and architectural practice underlines the paradox latent in any serious aesthetics after the Mosaic prohibition on the making of images and after the Platonic critique of the mimetic. A malaise lies near the heart of re-presentation. Why “double” the natural substance and beauty of the given world? Why induce illusion in the place of truthful vision (Freud’s “reality principle”)? Non-figurative, abstract art is in no way a modern Western device. As ancillary to the reception of the figural prodigality of the natural world, it has long been crucial to Islam. In its formalized borrowings from the shape of plants, from the geometries of live water, the Islamic ornamental motif is simultaneously an aid to disciplined observation of the created and an act of thanks. To borrow a key phrase: the aesthetics of Islam are indeed a “grammar of assent.”

(...)

“There is explicit engagement with transcendence in an Aeschylus, a Dante, a Bach, or a Dostoevski. It is at work with unspecified force in a Rembrandt portrait or on the night of Bergotte’s death in Proust’s Recherche. The wing-beat of the unknown has been at the heart of poiesis. Can there, will there be major philosophy, literature, music, and art of an atheist provenance?”

Eu concordo com Steiner quando ele diz que os físicos não se podem recusar a discutir o que existiu antes do Big Bang, mas não chega dizer que o rei vai nu, menos ainda com isso mesmo limitar-se a levantar a véu do retorno da ideia de um Criador de tudo. Desde logo, porque não concordo com o seu remate de que criadores ateus dificilmente poderão criar obras tão ou mais transcendentes que as de Michelangelo ou Dostoiévski. A declaração de Nietzsche de que "Deus está Morto" é mera constatação do processo desvelado por Darwin, o que não tem de ser nenhum niilismo, menos ainda um "desperançoso" "zero negro" como Steiner parece querer constatar no fecho da sua lição. 

Por outro lado, toda a viagem por entre o virtuosismo referencial de múltiplas ciências e artes é vertiginosa e por isso não supreende a admiração que Steiner sempre manteve na academia. Esta obra é talvez um dos seus maiores legados, representativo da sua mestria e capacidade intelectual.


Nota: lido em inglês em audiobook, acompanhado pela versão portuguesa editada pela Relógio d'Água com tradução de Miguel Serras Pereira.

novembro 22, 2020

a mecânica da ficção

"A Mecânica da Ficção", ou "How Fiction Works" (2008) de James Wood, não é um livro sobre escrita, nem sobre os processos de criação ficcional, é antes um livro sobre elementos da escrita que despoletam mundos de ficção, pelo que devemos partir para a leitura percebendo que a ficção acontece na interação entre o texto e a imaginação de quem lê. Assim, o que Wood faz é uma discussão sobre aquilo que o leitor e crítico leem, veem e sentem quando tornam em ficção as palavras presentes numa folha de papel. Não é uma obra sobre os processo psicológicos de criação dessa ficção porque se cinge ao que está escrito, ao que vem no papel, não elaborando sobre os processos pelo meio dos quais, nós leitores, efabulamos a ficção. Dito isto, é um texto sobre estética, ou seja, a experiência da obra de arte, na sua assunção direta, na interpretação do que vemos, lemos e sentimos, sem procurar compreender o como, ou seja, a psicologia do autor, no modo como ele age e cria a escrita, e do leitor, no modo como ele infere e cria o imaginário. Funciona como boa introdução à análise literária, mas não deve ser visto como compêndio de técnicas de escrita nem de percepção narrativa.

Exposto o alerta, o texto de Wood é excelente para quem deseja compreender melhor a análise da ficção, nomeadamente da ficção criada por meio de texto. A sua leitura ajuda-nos a entender porque certas obras são consideradas melhores do que outras, além de nos ajudar a compreender a evolução histórica da arte literária, assim como o modo como se processa essa evolução. 

Deixo alguns excertos que considero excecionais e nos ajudam a ser melhor leitores. Apesar de ter lido a versão portuguesa da Quetzal, numa tradução do Rogério Casanova, os excertos provêm da edição digital brasileira da SESI-SP, com tradução de Denise Bottman.


Narração e estilo indireto livre

“A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas. Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só. Qualquer outra coisa não vai parecer muito uma narração, e pode estar mais perto da poesia ou do poema em prosa. (...) Na verdade, estamos presos à narração em primeira e terceira pessoa. A ideia comum é de que existe um contraste entre a narração confiável (a onisciência da terceira pessoa) e a narração não confiável (o narrador não confiável na primeira pessoa, que sabe menos de si do que o leitor acaba sabendo).” (cap. 1)

“Uma vez W. G. Sebald me disse: “Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de livro”.”

“A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora em que alguém conta uma história sobre um personagem, a narrativa parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar. A onisciência de um romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expressão que possui diversos apelidos entre os romancistas − “terceira pessoa íntima” ou “entrar no personagem”"

Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles − que é o próprio estilo indireto livre − fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância."

"Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade idêntica à do narrador não confiável em primeira pessoa).”


Flaubert, a revolução da forma e do detalhe

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realça o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepção visual; que mantém uma compostura não sentimental e que se abstém, qual bom criado, de comentários supérfluos; que é neutra ao julgar o bem e o mal; que procura a verdade, mesmo que seja sórdida; e que traz em si as marcas do autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver. ” (cap. 29)

De início, não notamos o cuidado com que Flaubert escolhe os detalhes, porque ele se esforça em nos ocultar esse trabalho, e é zeloso em esconder a questão sobre quem está notando todas essas coisas: Flaubert ou Frédéric? Flaubert foi muito claro a respeito. Ele queria que o leitor ficasse diante do que chamava de parede lisa de prosa aparentemente impessoal, os detalhes apenas se acumulando, como na vida. “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”, disse numa frase famosa numa carta de 1852. “Como a arte é uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve operar com procedimentos semelhantes: que se sinta em cada átomo, em cada aspecto, uma impassibilidade oculta, infinita. O efeito no espectador deve ser uma espécie de assombro. Como surgiu tudo isso!” (cap .30)

Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do olhar − o olhar do autor e o olhar do personagem (...) Essa figura é, em essência, um substituto do autor, é seu explorador permeável, irremediavelmente transbordando de impressões (...) O surgimento do explorador permeável está intimamente ligado ao surgimento do urbanismo, ao fato de que imensas aglomerações de seres humanos lançam ao escritor − ou ao substituto designado para isso − quantidades imensas e atordoantes de detalhes variados. Jane Austen é, basicamente, uma romancista rural” (cap. 33)

Se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe. É até difícil dizer por quanto tempo a narrativa de ficção foi escrava dos ideais neoclássicos, que preferiam a fórmula e a imitação ao individual e à originalidade.” (cap. 49)

Podemos ler Dom Quixote, Tom Jones ou os romances de Austen e encontrar pouquíssimos daqueles detalhes recomendados por Flaubert. Austen não nos dá nada dos aparatos visuais que encontramos em Balzac ou Joyce e quase nunca se detém em descrever sequer o rosto de um personagem. Roupa, clima, interior, tudo está comprimido e afinado com elegância. Os personagens secundários em Cervantes, Fielding e Austen são teatrais, muitas vezes estereotipados, e passam quase desapercebidos no sentido visual.” (cap. 50)

“Como ocorre tantas vezes, a herança flaubertiana é uma bênção ambígua. Surgem de novo aquele estranho peso da “seletividade” que sentimos nos detalhes de Flaubert e a consequência dessa seletividade para os personagens do romancista − nossa sensação de que a escolha do detalhe se tornou o tormento obsessivo de um poeta, e não a leve alegria de um romancista.” (cap. 50)

“Assim, durante o século XIX, o romance se tornou mais pictórico.” (cap. 51)

“Não podemos escrever sobre ritmo sem falar de Flaubert, e assim, mais uma vez, como alguém que vive relendo as velhas cartas de um antigo amor, volto a ele. Claro que, antes de Flaubert, outros autores se mortificaram com o estilo. Mas nenhum romancista se preocupou tanto ou tão publicamente, nenhum romancista fez da poética “da frase” um fetiche no mesmo grau que ele, nenhum romancista levou a tais extremos a potencial separação entre forma e conteúdo (Flaubert sonhava em escrever, como dizia, um “livro sobre nada”). E, antes dele, nenhum romancista se compenetrou tanto em refletir sobre questões técnicas. Com Flaubert, a literatura se tornou “essencialmente problemática”, como definiu um estudioso. Ou apenas moderna?” (cap. 103)

“E o que Flaubert entendia por estilo, por musicalidade de uma frase? Esta é de Madame Bovary − Charles se sente estupidamente orgulhoso por ter engravidado Emma: “L’idée d’avoir engendré le délectait”. Tão compacta, tão precisa, tão rítmica. A tradução literal é: “A ideia de ter engendrado deliciava-o”. Geoffrey Wall, em sua tradução para a Penguin, escreve assim: “The thought of having impregnated her was delectable to him” [O pensamento de tê-la engravidado lhe era deleitável]. Isso é bom, mas coitado do pobre tradutor. Pois o inglês é um primo pobre do francês.” (cap. 103)


Metáfora

“A metáfora é análoga à ficção porque sugere uma realidade rival. É o processo imaginativo inteiro numa única ação. (...) “Estou lhes pedindo que imaginem outra dimensão, que concebam uma semelhança. Toda metáfora ou símile é uma pequena explosão de ficção dentro da ficção maior do conto ou do romance. (...) E é claro que essa explosão da ficção-dentro-da-ficção não é exclusivamente visual, assim como nenhum detalhe na literatura é exclusivamente visual.” (cap. 107)

“O tipo de metáfora que mais me agrada, porém, como as citadas sobre o fogo, é aquela que cria um estranhamento e logo em seguida faz uma conexão, e, ao fazer tão bem esta última, oculta o primeiro. O resultado é um pequeno choque de surpresa, seguido por uma sensação de inevitabilidade. Em Rumo ao farol, a sra. Ramsay dá boa-noite aos filhos e fecha cuidadosamente a porta do quarto, deixando "a língua da porta se estender devagar na fechadura”. A metáfora nessa frase não consiste tanto na “língua”, que é bastante convencional (pois as pessoas falam nas linguetas das fechaduras), mas está secretamente enterrada no verbo “estender”. Esse verbo estende o procedimento inteiro: não é a melhor descrição que vocês já leram de alguém virando muito devagar a maçaneta da porta para não acordar as crianças? ” (cap. 108)


Se comecei este texto por dizer que o livro tratava a análise literária e não a escrita, foi porque muito daquilo que aqui se descreve não está presente, pelo menos de forma consciente, na mente de quem escreve. O processo criativo, seja na escrita, pintura ou outra arte qualquer não se compadece de formulas nem guiões, a não ser quando se trabalha por encomenda. O modo como escolhemos as palavras, ou a palete de cores, em cada momento é determinado pelo imenso turbilhão de desejos e tensões que ocupam o nosso não-consciente na interação com o consciente. O criador, cria algo novo, porque se deixa levar pelo processo, e não porque se senta dizendo: "hoje vou criar uma metáfora capaz de..." ou "vou colocar o narrador depois do autor e antes do personagem". Se assim fosse, nada fluiria, apenas estruturas e mapas emergiriam em resposta à vontade predeterminada de criar. Isto é algo que se sente muito ao longo da leitura do texto, em que por vezes parece que Wood faz o criador ter a intenção de, quando na verdade, o criador é levado pelo próprio processo criativo. Nós, na análise é que podemos depois depurar o quê e o como, mas isto não serve a quem cria, apenas a quem analisa.

Isto é tanto mais evidente em dois capitulos que considerei mais fracos, "Personagens" e "Diálogo", porque Wood se deixa levar inteiramente pela subjectividade da sua experiência sem perceber que aquilo que interpretamos num texto, não é igual para todos. Ou seja, se o criador segue um processo interno próprio, o leitor não deixa também de o seguir. A imagimação criada na minha mente, a partir de uma frase lida num livro, não depende tanto daquilo que Wood aqui desconstrói, mas bem mais do meu processo de inferência, um processo completamente dependente da minha história experiencial enquanto dono de uma consciência humana. Por isso, ser um leitor europeu ou americano (mais nova-iorquino), com formação superior, vivendo no século XXI, com a leitura do cânone ocidental clássico realizada, permite-nos chegar muito mais próximo da Ficção imaginada por Wood do que falhando qualquer um destes elementos definidores do leitor.

Uma nota final sobre Flaubert. Agradeço a Wood todo esta desconstrução literária e análise histórica do impacto do trabalho de Flaubert, sem o que eu teria tido dificuldade em compreender o porquê de tantos grandes nomes da literatura se curvarem perante o mesmo. Compreendi e passei a respeitar muito mais Flaubert e a sua obra, ainda que julgue que tal não altere, em profundidade, ambas as interpretações que fiz dos dois livros seus que li"Madame Bovary" (1857) e "Educação Sentimental" (1869). Em ambos, foquei-me quase exclusivamente no conteúdo, a história, por me faltar este enquadramento histórico-literário apresentado por Wood. Mas como fiquei a saber por Wood, Flaubert era um formalista, à semelhança de Hitchcock, ambos sempre desprezaram o que se contava, interessava-lhes apenas a forma como se contava.

Wood termina com um capítulo intitulado "Verdade, convenção, realismo", no qual se dedica ao mais velho problema da arte — ilusão ou realidade; verdade ou viés. É uma questão cíclica, e ainda que sempre instigante, mas na verdade apenas relevante quando se analisa a estética desprendida da psicologia.