abril 02, 2021

Porque emergem comunidades?

No seu livro "Blueprint: The Evolutionary Origins of a Good Society" de 2019, Nicholas A. Christakis aborda a questão da formação das sociedades de uma perspectiva evolucionária. A abordagem seguida por Christakis é científica, mas não experimental de forma direta. Ou seja, usam-se múltiplos métodos de análise indireta do objeto, que permitem construir inferências que depois suportam a argumentação geral. Mas não existe uma forma de aceder empiricamente ao objeto da discussão, ou de o testar de forma completamente isolada. Para uma parte da academia, isto deita por terra o interesse deste trabalho, e considera-o mesmo uma afronta. Do meu ponto de vista, e de uma outra parte da academia, isso é miopia científica. 

No caso de Christakis, está em causa a avaliação do potencial inato dos nossos genes, das suas inscrições biológicas, no modo como afetam a construção do tecido social. A psicologia tem-se debatido sempre na busca pelos melhores métodos e testes para avaliar o comportamento humano, procurando respostas a vários níveis, desde a emoção à consciência. Mas a simples tentativa de conectar a biologia à psicologia levanta muitos sobrolhos, tanto do lado das ciências naturais, como do lado das ciências sociais. As primeiras atacam do alto do seu positivismo, contra a impossibilidade de observar e desse modo testar de modo experimental o objeto. As segundas, levantam de imediato as suas principais bandeiras vermelhas: o determinismo, o reducionismo, e o essencialismo. Ou seja, uma teoria que liga um comportamento humano à sua biologia está a dizer que o ser humano não é dotado de livre-arbítrio; que é feita reduzindo a enorme complexidade do humano a um conjunto abstrato e insuficiente de elementos; e por último, não passa de uma obsessão em busca de essências que não existem. 

Contudo, estes ataques não impediram António Damásio, Robert Sapolsky, Benjamim Bergen, Paul Bloom, Michael Tomasello, entre tantos outros de avançar com o seu trabalho. Naturalmente que se tratando de interpretação, a possibilidade de esta ser refutada por novos experimentos é maior do que a análise empírica diretamente replicável. Mas sem estas abordagens, a nossa ciência não passaria da descrição. E tal seria suficiente se quiséssemos apenas isso, mas queremos mais da ciência. Queremos que ela contribua para a construção do significado da realidade em que vivemos. E se é esse o ónus que colocamos sobre ela, então não nos podemos furtar à interpretação e especulação na tentativa por compreender em cada vez maior profundidade e detalhe o modo como funcionamos.

Sobre os ataques à abordagem científica, Christakis discute-os de modo frontal, e põe o dedo em múltiplas feridas:

“For too long, many people have perpetuated a false dichotomy whereby genetic explanations for human behavior are viewed as antediluvian and social explanations are viewed as progressive. But there is a further problem with people putting their heads in the sand when it comes to human evolution, and that is the overcorrection that results. Choosing cultural over genetic explanations for human affairs is not more forgiving. After all, culture has played a huge role in slavery, pogroms, and the Inquisition. Why should the social determinants of human affairs be considered any better — morally or scientifically —than the genetic determinants? 

(…)

There is a long history, for example, of denying any biological basis for homosexuality and seeing it as a lifestyle choice under the control of the individual, a choice that others then may respond to with opprobrium, oppression, and violence.”

(…)

I believe that a better path forward is to examine our shared evolutionary heritage in order to identify the ancient roots of human similarity. The thing about genes is this: we all have them. And at least 99 percent of the DNA in all humans is exactly the same. A scientific understanding of human beings actually fosters the cause of justice by identifying the deep sources of our common humanity. The underpinnings of society that we have come to understand—the social suite that is our blueprint—have to do with our genetic similarities, not our differences.”

O interesse deste trabalho de Christakis foca-se exatamente no conceito da existência de uma “suite social", um conjunto de traços que identificam na base da nossa formação, os despoletadores das relações sociais humanas. É uma proposta arriscada no avanço na compreensão do que somos, que procura perceber como a genética providenciou caminhos para criarmos desde as simples comunidades de 2 a 4 pessoas a civilizações inteiras. E esta proposta é tanto mais interessante porque partindo da neutralidade da natureza, procura compreendê-las como traços positivos da espécie, ao contrário de muito trabalho que tem procurado usar a genética para desculpar problemas sociais e culturais.

A Suite Social

1. A capacidade de ter e reconhecer a identidade individual

2. Amor pelos parceiros e descendentes

3. Amizade

4. Redes sociais

5. Cooperação

6. Preferência pelo seu próprio grupo ("in-group bias")

7. Hierarquia suave (igualitarismo relativo)

8. Aprendizagem e ensino social


Esta suite, segundo Christakis, é o conjunto de traços que permite a qualquer conjunto de humanos trabalhar, de forma previsível, para promover a emergência do sentido de comunidade. Para chegar aqui, Christakis analisou uma miríade de comunidades, desde as não-intencionais como as formadas em ilhas por naufrágios, às intencionais como comunidades americanas que procuram estabelecer utopias comunitárias (ex. Kibbutzim), a comunidades artificiais (ex. massive online games). A análise é feita com base nos efeitos e impactos societais, mas suportada numa base de dados da genética e psicologia, mas também antropologia e neurociências, relacionando-se sempre também com as redes sociais desenvolvidas em comunidades de animais

Confesso que é uma lista grande, e que apesar de me ter deixado convencer pelo autor, não é de todo uma lista fácil de demonstrar em termos de evidência empírica. Contudo, como se depreende, a proposta é apresentada exatamente pelos elementos à chegada. Ou seja, o que é listado são os atributos sociais, e não os elementos genéticos que os promovem. Nesse sentido, julgo que continua a haver aqui muito trabalho para continuar a aprofundar e a desenvolver. Sendo também uma obra que trabalha muito bem com propostas de outros autores, nomeadamente como Jared Diamond.

Julgo que como resultado substancial desta obra temos não uma mera suite de comportamentos, mas temos uma primeira pedra para a conceção de que “as sociedades partilham algumas propriedades universais e essenciais”. E isto apesar de ser muito evidente, quem de nós pode acreditar que as pessoas se juntam e trabalham para um mesmo objetivo por mero acaso, é importante que vamos aprofundando a compreensão do modo como se processa esta sede de aproximação e criação conjunta.

Sem comentários:

Enviar um comentário