fevereiro 26, 2021

A academia e o problema da mente-corpo

Rebecca Goldstein é uma académica da área da Filosofia, tendo começado a sua carreira no domínio da Física, acabaria por mudar-se para a Filosofia e seguir o ramo da Filosofia da Ciência. Isto é importante, porque este seu primeiro romance — "The Mind-Body Problem" (1983) — contém enormes traços autobiográficos. Um dos seu livros posteriores — "Incompletude: A Demonstração e o Paradoxo de Kurt Gödel" (2005) — dá conta da relação entre Godel e Einstein em Princeton, tendo-o lido antes, serviu-me aqui para compreender em muito maior detalhe o mundo e a cultura da autora. Mas, para primeira obra, o que verdadeiramente impressiona, não é o caráter conceptual,  é a audácia. A capacidade de criar uma voz familiar que não se acanha, que se expõe sem constrangimentos.

Goldstein provém de uma família judia, com proximidade ao seu mundo ortodoxo. Desde pequena a sua porta de escape foram os estudos, nos quais foi sempre capaz de brilhar. Naturalmente que o estudo do mundo das ideias não a poderia deixar indiferente à ortodoxia da sua família, assim como a outras superstições que vão surgindo no livro. Se isso pode ser entendido como crítica à cultura judia, ela é feita por alguém que a viveu por dentro, alguém que ousou estudar aquele que por eles foi banido, Espinosa. Mas o debate entre o que se é e se quer ser é uma luta permanente ao longo de todo o livro.

Outro ponto muito relevante, é o facto da obra ser do início dos anos 1980, que pode parecer um mundo muito recente, contemporâneo, e no entanto as descrições da vida do casal, da forma como os homens olham para as mulheres, e como estas aceitam o papel que se lhes atribui, ainda mais num mundo tão letrado, parece não ser de há 40, mas de há 200 anos. Veja-se este retrato de um passeio por Roma, sozinha:

“I would have liked, at least, to be able to walk these foreign streets inconspicuously; the Roman men would not allow it. Their demonstrativeness surpassed anything I’d encountered (with the possible exception perhaps of the time I almost caused a riot walking down the Upper West Side’s Broadway in a pair of yellow shorts on an airless August afternoon). Here in Rome men would walk beside me for blocks, declaiming. One jumped out of his car and fell before me on his knees. I didn’t enjoy any of it.”

Se o tom é autobiográfico e perfurante, nem por isso é dramático, ou completamente dramático, entra antes num registo típico de tragicomédia. Julgo que foi esse lado cómico que permitiu a Goldstein ser tão audaz, poder brincar com o mundo que viveu, com as ideias que detém sobre a realidade que conhece, sem se inibir. Não raras vezes dei por mim a rir dos seus comentários, nomeadamente à vida académica. O livro fala muito para todos aqueles que conhecem academia por dentro, que dedicaram um bocadinho de tempo a tentar compreender a mesma, a "fauna académica", como ela diz. 

Podemos dizer que Goldstein criou uma comédia de costumes no seio da academia. Que o faz recorrendo ao melhor da literatura. Podemos facilmente ver os peões em jogo a obedecer a Jane Austen, a seguir os passos de Madame Bovary, ou a aproximar-se do mundo dramático de Edward Albee. E depois, sobre toda esta teia romanceada joga ideias e conceitos do mundo de Descartes, Espinosa, Godel e Einstein, assim como religião e muito sexo.

Mas de que fala em concreto esta obra que dá pela designação de "Problema mente-corpo"? Fala exatamente dessa questão filosófica que tanto atormentou Descartes. Não é por acaso que a protagonista se chama Renee Feuer, à semelhança de René Descartes. O livro abre com uma ideia que vai se repetindo:

“I’m often asked what it’s like to be married to a genius.”

E que serve exatamente para colocar o dedo no cerne do problema: a mente ou o corpo? O que quer cada um? É um só? São dois? De que modo os concebemos, de que modo nos sentimos, e de que modo o perspectivamos nos outros. Descartes lançou o desafio da Dualidade, e se depois a temos tentado rebater, mais recentemente com a neurociência, por Damásio, a verdade é que continuamos a sentir esta ânsia por separar a mente do corpo. 

O livro trabalha a separação em duas frentes, a genialidade e a sexualidade. A genialidade intelectual quer-se totalmente alheia ao corpo, ignorando-o. Como diz a certa altura:

"Observers of the academic scene may be aware that there are distinct personality types associated with distinct disciplines. The types can be ordered along the line of a single parameter: the degree of concern demonstrated over the presentation of self, or “outward focus (...)

The degree of outward focus is in inverse proportion to the degree of certainty attainable within the given methodology. The greater the certainty of one’s results, the less the concern with others’ opinions of oneself.

Thus at the end of the spectrum occupied by sociologists and professors of literature, where there is uncertainty as to how to discover the facts, the nature of the facts to be discovered, and whether indeed there are any facts at all, all attention is focused on one’s peers, whose regard is the sole criterion for professional success. Great pains are taken in the development of the impressive persona, with excessive attention given to distinguished appearance and faultless sentence structure.

At the other end, where, as the mathematicians themselves are fond of pointing out, “a proof is a proof,” no concern need be given to making oneself acceptable to others; and as a rule none whatsoever is given.

(...) the location of the philosophers -- turns out to be complicated. Philosophy’s own ambivalent position between the humanities and the sciences has resulted in a corresponding schizophrenia in the personality type. There are, in fact, two distinct philosophy types, both extreme. Some philosophers approach the pure mathematician’s end of the spectrum, while others (probably the majority) rival the members of English departments in their obsessive concern over the impression they make on others."

Por outro lado, a sexualidade é discutida na forma como obsessivamente procura o contrário, a ausência da mente, e o comando do corpo. Olhamos para o nosso corpo como algo autónomo que possui desejos estranhos a nós mesmos, que não conseguimos controlar, e por vezes queremos mesmo evitar. Queremos alcandorar a nossa mente num patamar que sentimos que o corpo não pode sequer imaginar, porque de certa forma conspurca a celestialidade desse imaginário. É uma culpa que Goldstein tenta atirar, em parte, para a religião, mas não só, porque acaba provindo exatamente desse problema que é a tentativa de separar um do outro, e de cada um não deter, aparentemente, o controlo sobre o outro. Embora, como diz a autora, o sexo seja muito mais do que mero corpo:

“Haven’t you failed to consider that the object of sexual desire is not a sensation … but a person? If you overlook that, then all sex is a kind of masturbation, rather an awkward kind at that, when you do it with someone else. Only that’s all wrong. Masturbation isn’t even sex, not really. It’s the form of sex without the content; even when attaining the sensations (often more successfully than in the real thing), it’s still missing the point. Because the point lies, somehow or other, in the other person, in the reciprocal desiring."

A questão acaba por chegar a uma conclusão, a possível mas brilhante, e que determina a razão da eterna dualidade: 

“Are you a body?

No, I certainly am not. But everybody else is. (...) it’s what we all unreflectively and inconsistently think. It’s unnatural to identify yourself as a mere body, but it’s natural to identify anybody else with his.”

2 comentários:

  1. Muito bom. Este tema é muito interessante, mas é difícil encontrar uma abordagem sólida ao mesmo; a maioria das abordagens faz lembrar um slogan de marca de iogurtes com 0% de matéria gorda... Le Goff também aborda este tema (numa perspectiva medieval) na sua «história do corpo na idade média.» Vou ver se leio este, parece bastante lúcido sem abdicar do humor. :)

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    1. O melhor é mesmo a forma como ele não reprime e por meio do humor toca nos tabus. Mas não esperes exposições filosóficas de aprofundamento, é um romance. Apesar de haver pessoal a queixar-se de excesso de exposição filosófica, eu queixo-me de ser reduzida, queria mais. Em certas partes, considero que há mesmo excesso de romance. Mas no final acho que consegue um bom balanceamento.

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