março 27, 2021

O nosso Movimento molda o nosso Pensamento

Barbara Tversky apresenta no seu último livro, "Mind in Motion: How Action Shapes Thought" (2019), uma teorização sobre a cognição, ainda que não completamente nova, arrojada. Defende que o nosso pensamento não é construído pela linguagem, mas pela ação, pelo movimento. Tversky diz-nos que usamos as palavras para descrever, mas na verdade a nossa mente constrói conceitos por via de imagens mentais criadas a partir da nossa ação sobre a realidade. Damásio tem falado bastante sobre estas imagens mentais, e sobre a implicação da emoção e do corpo nos processos de raciocínio, mas mais próximo ainda, é o trabalho de Benjamin Berger, no livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012), que defende, também, que não processamos a informação em modo de texto, mas por meio de imagens ou simulações mentais. Tversky dá um exemplo clássico, mas que todos nós podemos rapidamente intuir, e que passa pela enorme dificuldade que temos em descrever a cara de alguém em palavras. Isto, para Tversky, é um indício de que a nossa capacidade de pensar não acontece a partir de um processo mental textual algorítmico inato, como defende Chomsky, mas é antes produzida por via da nossa ação no espaço e tempo, pela nossa atuação interativa com o real que nos permite relacionar e construir mentalmente a realidade na nossa mente.

Mendelsun, no seu livro "O Que Vemos Quando Lemos" (2014) defendia mais, dizia que não recordamos as personagens sobre as quais lemos nos livros, nem formamos sequer uma imagem delas quando estamos a ler. Recordo que aquando da leitura do seu livro teci algumas críticas duras pela falta de suporte empírico à sua abordagem, já que parecia sustentar-se unicamente na sua experiência pessoal. Mas lendo agora Tversky, colocando todo um conjunto de autores e estudos em cadeia, e ainda o que eu próprio sinto quando leio, que vale apenas o mesmo que Mendelsun mas confirma, tenho de confessar que Mendelsun apesar de não apresentar suporte empírico, tinha razão. E isso explica algo que me venho cansando de ler, que são descrições como “nariz aquilino”, "nariz adunco" ou "olhos amendoados", que servem zero na minha visualização do personagem. Se vir uma imagem, intuo imediatamente a pessoa, mas por palavras, por mais belas e descritivas que sejam, emerge o vazio da imagem de Karenina abaixo. No fundo, isto vem ao encontro das metáforas, e da razão provável pela qual a Literatura usa e abusa de metáforas, enquanto o Cinema praticamente nunca recorre a elas, porque a metáfora é apenas e só, um processo de dar a ver por meio de elementos que já se conhecem.

Apesar de toda a elegância de Tolstói na descrição de Anna Karenina, dificilmente conseguimos formar uma imagem mental da sua cara a partir de meras palavras [imagem do livro de Mendelsun]

Tversky explica que esta nossa forma de compreender o mundo acontece porque “Everything is always in motion", tal como nos diz Rovelli a propósito da realidade e do tempo, mas simultaneamente explica porque são tão importantes as palavras:

“Thought, too, is constantly moving, and sometimes hard to catch. Ideas leapfrog over ideas. But there it is: idea. I’ve frozen it, reified it into something static, the only way to catch it. From the never-ceasing flux around us, we carve entities out of space and out of time: people, places, things, events. We freeze them, turn them into words and concepts. We change those moving things into static things so that we can act on them with our minds.”

Aliás, repare-se nesta frase de Vallejo em "O Infinito num Junco":

“o ofício de pensar o mundo existe graças aos livros e à leitura, ou seja, quando podemos ver as palavras, e refletir devagar sobre elas, em vez de nos limitarmos a ouvi-las pronunciar no veloz rio do discurso.”

Ou seja, naturalmente que é a linguagem que nos permite construir a enorme complexidade desvelada pela união, fusão, cisão de ideias, conceitos, frases, pois ela permite, como diz Tversky e Vallejo, congelar o tempo e atuar sobre esse momento parado. Aliás, essa é a força da literatura, e diferença face ao cinema, porque como diz Tversky, 

“Dozens of studies have shown that it’s easier to grasp structure than dynamics. Structure is static. Dynamics is change, often causality.”

Mas o acesso às ideias e conceitos faz-se pela percepção que por sua vez é construída pelo movimento no espaço. Tversky propõe mesmo um conceito para isto:

Spraction” = ações no espaço que desenham o nosso mundo e criam abstracções na nossa mente.

Tversky defende que são as nossas ações no espaço que nos permitem integrar a informação que nos chega pelos sentidos e assim compreender os pensamentos das outras pessoas, conseguindo não só imitá-las, mas colaborar, cooperar e coordenar com elas. No fundo, o velho ditado, mas ao contrário: “olha para o que eu faço, não para o que eu digo”. 

Pode-se ligar a esta ideia, a proposta de Daniel Wolpert sobre a razão pela qual, nós humanos e mais algumas espécies, possuímos um cérebro:

“you may reason that we have one to perceive the world or to think, and that's completely wrong. If you think about this question for any length of time, it's blindingly obvious why we have a brain. We have a brain for one reason and one reason only, and that's to produce adaptable and complex movements.”

“Movement is the only way you have of affecting the world around you (…) everything goes through contractions of muscles. So think about communication — speech, gestures, writing, sign language — they're all mediated through contractions of your muscles. So it's really important to remember that sensory, memory and cognitive processes are all important, but they're only important to either drive or suppress future movements.”

"the humble sea squirt. This rudimentary animal, has a nervous system, swims around in the ocean in its juvenile life. And at some point of its life, it implants on a rock. And the first thing it does in implanting on that rock, which it never leaves, is to digest its own brain and nervous system for food. So once you don't need to move, you don't need the luxury of that brain. And this animal is often taken as an analogy to what happens at universities when professors get tenure, but that's a different subject. " Daniel Wolpert, 2011

E repare-se como isto se liga aos estudos sobre a nossa linguagem corporal, nas palavras de Tversky:

“Sit on your hands. Then explain out loud how to get from your house to the supermarket, train station, your office or school.
(...)
When people are asked to explain or describe spatial relations while sitting on their hands, they have trouble speaking. They can’t find words.
(...)
People blind from birth, both children and adults, gesture, even when speaking to each other. They have never seen gestures nor have their conversation partners. They seem to gesture for themselves. Gesturing by people who are blind, as for the people with sight in the previous experiments, seems to help them speak. But it turns out it isn’t just word finding people have trouble with when they can’t use their hands. Preventing gesturing doesn’t just disrupt speaking, it disrupts thinking.

Isto suporta a teorização dos “neurónios espelho” por Giacomo Rizzolatti, que alguns também têm vindo a contestar, mas que é hoje muito defendida pelos estudos da Empatia, e a própria Tversky usa aqui para estruturar a sua abordagem, da seguinte forma:

“Mirror neurons unite doing and seeing for specific actions (…) the finding suggests that action mirroring, sometimes called motor resonance, underlies action understanding. Seeing is mapped to doing and doing is mapped to seeing. I understand what I see you doing because an echo of the doing resonates in my own action system.”

Tversky chama a atenção para os exageros em redor do que nos podem dizer os neurónios-espelho, ressalvando o movimento:

“Naturally, these findings, now replicated many times, have generated enormous excitement. Overinterpretation of tantalizing findings like these is inevitable. Might mirror neurons underlie imitation, learning, and memory? The research group in Parma has gone to great effort to explain that seeing is not imitating and that understanding is not doing. If it were that simple, we’d all be expert pianists or basketball players or acrobats. Motor resonance, however, is real”

No entanto, a partir do movimento, da ressonância motora, constrói toda a sua abordagem à cognição como processo de ação, como se pode ver aqui:

“It turns out that our perception and understanding of the bodies of others are deeply connected to the actions and sensations of our own bodies. What’s more, the connection of our bodies to those of others is mediated by the very structure of the brain and the nervous system (..) we understand actions that we view by simulating the actions in our bodies, by embodying the perception.
(…)
These seemingly irrelevant behaviors turn out not to be irrelevant; they serve as “social glue,” showing and promoting mutual understanding, thereby enhancing communication and cooperation. If we use the same words, if we make complementary actions, we are understanding each other. And we like each other more.”

Por andar agora a ler “The Culture Code: The Secrets of Highly Successful Groups” (2017) de Daniel Coyle, encontrei há dias os experimentos de design de Peter Skillman, que junta pessoas para construírem torres de esparguete, verificando que por mais dotadas que sejam em termos de formação científica, perdem sempre para as crianças. A razão parece ser simples: com a aprendizagem formatamos e restringimos o nosso comportamento para não invadir o espaço do outro, deixamos de funcionar tanto como espécie gregária, e vamo-nos tornando mais individualistas, perdendo capacidades para nos colocarmos no lugar dos outros e trabalhar em equipa.

Os grupos de criança ganham sempre. Estudos colocaram-nos a competir com estudantes de gestão, com engenheiros, com CEO, todos conseguiram torres com alturas menores.

E voltando a Tversky, ela diz:

“from the beginning of life we move and act in space, interacting with our surroundings, with space itself, and with the things we encounter in space. Those actions yield sensations, both from within the body and from outside the body. The actions and sensations of our bodies form our conceptions of our bodies. (…) How we interact with the things in the world alters the ways we perceive the world. The bodies of others are undoubtedly the most important things we encounter and interact with throughout our lives. We understand others’ bodies and their actions through our own bodies (…) Coordinating our actions with others depends on understanding others’ actions but also on shared understanding of what we are engaged in, on rhythm, on joint attention, on the task at hand, and on what surrounds us in the world.

A teoria de Tversky, como já demonstrei acima, não é nova, existe muito trabalho por exemplo no campo da Filosofia. Fernando Varela e a sua seminal obra “Embodied Mind” (1991/2016), assim como toda a obra de  Humberto Maturana, e mais recentemente com a proposta dos 4E Cognition (embodied, embedded, enactive, and extended). É verdade, como alguns acusaram, que Tversky nunca cita esta área de estudos. Contudo, não acredito que o faça por desconhecimento, mas simplesmente por que o seu trabalho usa metodologias distintas, mas também, pelo que temos visto acontecer com Bergen, e nomeadamente Everett quando ousou ir contra a teoria da linguagem de Chomsky, ela não terá pretendido entrar em polémica com ninguém.

Na verdade, Tversky já não precisa de provar nada a ninguém, ela é hoje professora emérita da Universidade de Stanford. No passado, foi casada com o falecido Amos Tversky que formou equipa durante décadas com Daniel Kahneman, e teria recebido o Nobel com ele, se não tivesse morrido antes. Mas enquanto Amos se dedicava a compreender os vieses da racionalidade com Kahneman, Barbara dedicou-se a compreender como formávamos a realidade na nossa mente. Este seu livro é o resultado de décadas de estudos e experimentos. E é por isso que Tversky ousa fazer algo que muito poucos ousariam, propor Leis de Cognição. Sim, não fala em princípios, define-os mesmo como leis, e lista 9:

The Nine Laws of Cognition 

1: There are no benefits without costs.

2: Action molds perception.

3: Feeling comes first.

4: The mind can override perception.

5: Cognition mirrors perception.

6: Spatial thinking is the foundation of abstract thought.

7: The mind fills in missing information.

8: When thought overflows the mind, the mind puts it into the world.

9: We organize the stuff in the world the way we organize the stuff in the mind.


Nos últimos capítulos Tversky dedica ainda uma boa parte da discussão ao Desenho, ao Design, e à UX, permitindo-nos compreender melhor como usamos o desenho para pensar, ou como usamos os outros para nos ultrapassarmos a nós mesmos, citando alguns pontos sobre Leonardo que já aqui tinha trazido a propósito da biografia de Isaacson:

“Leonardo da Vinci drew constantly. He drew to see, he drew to think, he drew to create. Even his prodigious mind wasn’t large enough to imagine his phenomenal ideas; his hand had to put them before his eyes. Drawing could reveal the structure of things, and even more central to Leonardo’s thinking, drawing could reveal the action of things, how they work, what they could do. (…) He was one of the first to intentionally use drawing as an empirical method. Others have followed and continue to do so. (…) Drawing was a form of empirical research. It wasn’t enough to look at skulls and bones and muscles and hearts and ventricles. You didn’t really see them and certainly didn’t know them until you drew them and revealed their forms and how they were connected.”

Sobre a UX, Tversky apresenta um estudo sobre Criatividade, comparando processos criativos em dois modos: “deambulação mental” e “centrado no utilizador” 

 “a human-centric approach to design. Let’s call it empathetic design. They study a community of users intensively to see what people actually do and what kind of new product or service might improve their lives, fit into their lives, and be sustainable. An empathetic perspective does provide a productive search strategy: think about people’s lives, take the perspective of users.” 

“We compared those two strategies, mind wandering and empathetic, for the standard divergent thinking task, finding new uses for familiar objects. 

(…)

The hands-down winner was the empathetic perspective. The mind-wandering group was no better than the control group. In fact, many in the control group told us they just let their minds wander. Both perspectives appeared to provide strategies to release thinkers from fixation, but only the empathetic approach gave a productive way to search for new uses. Taking other perspectives led people to suggest more new uses and more creative new uses. Creative uses were those that only one or a few people came up with.”

Um processo de observação direta da ação dos utilizadores, comum em UX


Sem comentários:

Enviar um comentário