fevereiro 20, 2023

Bowie, um hino à vida

"Moonage Daydream" (2022) oferece-nos apenas duas horas sobre a vida de Bowie, focadas num infinitamente pequeno número de coisas que disse e fez, ainda assim parece-me que o realizador Brett Morgen criou uma excelente síntese do todo ao focar-se sobre os aspetos criativos, suas motivações e processos. Ao longo dessas duas horas somos brindados com interrogações sobre o humano, a sua existência, propósito e lugar. Bowie não foi mero artista, foi um criador natural, possuia dentro de si uma fome por explorar o inexplorado, por compreender o incompreendido, por ir além do conhecido.

"INTERVIEWER: You described yourself as a generalist.

DAVID: Yeah. That's a freedom, giving umbrella. It gives me a chance to do anything I want successfully or unsuccessfully, without being tied down. I want-- I'm a generalist, is really sort of my cliche way describing myself." 

Resulta evidente que apesar da experimentação com múltiplas média artes — música, pintura, escultura, vídeo, e performance - a escrita esteve sempre na base de tudo. O fundamento criativo de Bowie era sustentado por um processo de escrita que o ajudava no processo de busca de auto-definição. Muito ficou de fora destas 2 horas, mas tenho de explicitar uma em particular, o facto de Bowie ser um leitor voraz. Vemos Bowie continuamente em busca de novas experiências viajando por todo o planeta, vivendo e convivendo com culturas distantes, dando conta da sua infinita sede de chegar às diferenças do outro. Mas Bowie viajou muito mais do que aquilo que meras viagens físicas lhe poderiam oferecer, usou e abusou dos livros. Para quem quiser conhecer melhor Bowiw, ele deixou-nos a sua lista dos 100 livros preferidos.

"Well, I went to Los Angeles and I lived there for a couple of years, which is a city I really detest. So, I went to live there to see what would happen to my writing."

"Until I'm performing or writing I mainly feel pretty much of an empty vessel."


Bowie foi muitas coisas, mas este documentário torna para mim claro que foi alguém dotado de uma curiosidade insaciável. Em tudo e todos procurava novas formas de fazer, novas formas de criar, novas formas de se transcender, para o que usava da escrita em profundidade para criar guias. Lendo nas entrelinhas, Bowie  foi herdeiro de Da Vinci, na sua necessidade por compreender e criar incessantemente, mas aproximou-se também tremendamente de Pessoa e Proust. Duas entidades que passaram por este planeta com um propósito único, criar. Bowie, viveu para além dos 50, e foi obrigado a reinterpretar os seus anos mais criativos, tendo percebido a mensagem essencial da vida, de que por mais que procuremos, por via da mais pura criatividade, não existe um propósito, nem sequer um ponto de chegada. Estamos num fluxo, somos continuamente transientes, e podemos apenas tentar fazer o melhor que pudermos em cada momento. 

"I think it has something to do with being able to reach the end of any one day and feel that you took from it and gave back to it as much as possible. I hate to waste days. I've just been feeling a lot more comfortable with life, and myself, and my writing and everything as the years go by, so it's... I just happen to be in a great place. I'm really lucky in that way."

Claro que toda esta visão é imensamente ajudada pela visão de Brett Morgen que fez uma síntese apenas do lado mais positivo e expressivo de Bowie. Vemos Bowie continuamente a enaltecer a vida, a dar graças por estar vivo, a desejar chegar ao íntimo de si para se dar ao outro. Mas nada disto existiu sem muitos momentos maus, dias terríveis com muitos problemas, em que lhe terá apetecido por fim a tudo.

O Bowie mais novo cantava:

"You're too old to lose it, too young to choose it 

And the clock waits so patiently on your song

You walk past the café, but you don't eat

When you've lived too long

Oh, no, no, no, you're a rock 'n' roll suicide"

O Bowie mais velho dizia:

"All people, no matter who they are, they all wish they'd appreciated life more. It's what you do in life that's important, not how much time you have, or what you wish you'd done."

O documentário dá-nos a ver muitas imagens de arquivo, algumas mais raras, muitos momentos televisivos em que Bowie foi questionado e respondia com uma enorme inquietude. Morgen não quis contar a história cronológica, nem sequer dos momentos mais altos. Morgen quis criar uma visão cinematográfica de uma "estrela", focando-se na energia que sustentava o seu brilho, tendo produzido uma obra ao nível da criatividade erudita de Bowie. 

Altamente recomendado.

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