janeiro 01, 2023

“Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975)

Se de nada mais valesse, o cânone que a revista britânica Sight & Sound* vem criando e revendo desde 1952, já serviu para demonstrar o quão enviesada pode ser a nossa visão de um mundo quando nos é apresentada por um grupo de pessoas pouco, ou nada, diverso. Foram necessárias sete décadas para que um filme criado por uma mulher chegasse ao Top 10, e tal foi apenas conseguido porque se alargou tremendamente o leque de críticos ouvidos (de 63 em 1952 para 1639 em 2022), mas acima de tudo porque se diversificou o seu género. 

Se em 2012 tínhamos sido surpreendidos com o derrube de Citizen Kane, no primeiro lugar há décadas, por Vertigo, julgo que ninguém estava preparado para em 2022 ver um filme de 1975 entrar para o top 10 pela primeira vez e diretamente para o primeiro lugar. E eu digo, na primeira pessoa, que não estava preparado, a ponto de ter visto praticamente todos os filmes destas listas, mas o filme vencedor ser exatamente um dos poucos que eu não tinha visto. Há décadas que lia sobre “Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975) de Chantal Akerman, mas por alguma razão nunca o tinha visto. E essa razão é hoje para mim um pouco mais clara, a falta da devida consideração por parte do meio, críticos e artistas. E por isso, tendo visto o filme por estes dias, sinto-me agora na obrigação de partilhar a minha experiência do mesmo.

Desde logo a primeira grande impressão da visualização de “Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” surge com a atualidade do que se discute, a condição da mulher. O cenário apresentado não é assim tão distante no tempo, 40 anos separam-nos de um reconhecimento vital para as mudanças que vimos acontecer na Europa. Mas um filme não se torna canónico pelo tema, ou mero ativismo, apenas.

A obra de Chantal Akerman é portentosa no nível formal, não sendo mero experimentalismo, mas socorrendo-se de uma estética clássica do cinema artístico, que evoca a necessidade de criar a experiência daquilo que se pretende comunicar por meio do próprio ato de visualização, hoje mais reconhecido como “slow cinema” (ex. Andrei Tarkovsky, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni ou Bela Tarr). No caso, o filme conta 3h20m, uma duração longa que se torna ainda mais pesada pela montagem e enquadramentos escolhidos, com planos estáticos, sem movimento de câmara nem de ação, que vão acima dos 2 e 3 minutos. Per se, isto torna o filme inacessível a larga maioria do público jovem, excessivamente formatado pela velocidade Marvel. Contudo, para quem ousar enfrentar aquele que é agora o nº1 do cânone fílmico a recompensa é tremenda. 

Os primeiros impactos surgem por via dos questionamentos que a obra nos obriga a fazer: Porque estamos a ver isto? Porque é importante todo este detalhe? Porque ainda não mudou para a outra divisão e mostrou o que estão a fazer lá? Porque continua a mostrar o óbvio? Porque se foca no banal? Porque não falam? Porque não dizem o que sentem? Porque entrou agora aquela pessoa e nada disse? Porque apagaram a luz? Porque lhe deu dinheiro? Porque se sentaram na mesa? Porque abriu a janela? Porque não têm televisão e ouvem rádio? Porquê? Porquê? Porquê?

É isto que o filme consegue fazer, elevando o cinema ao nível da literatura. Com tudo a ser mostrado no mais ínfimo detalhe e, no entanto, as questões a emergirem como se mais detalhe nos faltasse conhecer. A obra trabalha para nos envolver, para nos colocar dentro do mundo daquela dona-de-casa, viúva e com um filho adolescente para criar, e depois obriga-nos a procurar as respostas dentro de nós mesmos. A chave para descodificar aquilo que acontece não está no filme, é preciso que o espectador compare a obra com a realidade que conhece, e assim ganhe um entendimento do que está a ver acontecer no ecrã. É um filme, que tal como a literatura, consegue produzir verdadeiro pensamento crítico pelas analogias que nos obriga a realizar e questionar.

Indo mais fundo, podemos ver como a rigidez técnica dos enquadramentos e montagem se refletem diretamente na rigidez da personagem e do que ela tem para dizer, no como o racional toma conta do emocional. Se o que vemos parece imbuído de uma lógica técnica profunda, o comportamento humano parece ter sido diminuído a uma condição absoluta de respeito pelo funcional e útil. Até aqui, temos assunto para páginas e páginas de filosofia que o filme nos oferece por meio da meia-dúzia de enquadramentos e performances dos atores. Mas depois repare-se como tudo é assim apenas até ao momento em que o carnal toma conta da fonte do emocional conduzindo ao despertar da revolta que põe fim ao filme. O questionamento do que acontece na cena final é primordial na compreensão daquilo que faz de nós humanos, e que contribuiu para a revolução feminista das últimas décadas.


* Esta lista realiza-se desde 1952 com Críticos, tendo em 1992 passado a realiza-se uma segunda lista de escolhas por Realizadores. Assim, em 2022, a escolhas dos realizadores recaiu sobre “2001”, tendo mesmo aí  “Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” ficado em 4º. Podem ver todas as listas, desde 1952, na Wikipeda. A revista Sight&Sound é publicada pelo British Film Institute desde 1932.

Visto no dia 30 dezembro 2022.

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