Miller passou as últimas décadas a defender a ciência por detrás da teoria da evolução em tribunais, apresentando argumentação contra os movimentos de criacionistas e defensores do design inteligente. Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a evolução, nomeadamente fique reticente quando ouve que “tudo não passa de uma teoria”, Miller faz aqui um bom trabalho de desmistificação, apresentando evidências, ao nível do DNA, do processo evolutivo da vida na Terra. Mas Miller não escreveu “The Human Instinct”(2018) para explicar o suporte existente à teoria de Darwin, o seu objetivo é bastante mais vasto. A questão central aqui é a de saber se o evolucionismo por ter morto Deus, como disse Nietzsche, nos deixou realmente órfãos e entregues ao niilismo, ou se podemos encontrar no próprio processo evolucionário algo mais.
Para responder ao desafio Miller centra-se na psicologia evolucionária, partindo da sua base, a sociobiologia, uma área que tem defendido e continua a defender, mas decidindo aqui atacar a área, não a sua base, mas os excessos cometidos pelos seus defensores. A psicologia evolucionária, enquanto área, e seguindo da biologia, procura identificar traços psicológicos que podem ter sido criados por meio de adaptações — por exemplo o infanticídio ou o reconhecimento do belo. O problema, como diz Miller, é que alguns investigadores da área tendem a levar ao extremo as suas teorizações, procurando em todo e qualquer comportamento forçar uma base de partido evolucionária. Isto tende, naturalmente, ao reducionismo daquilo que é neste momento o domínio mais complexo dado à nossa compreensão, a nossa própria consciência, esquecendo a imensa variabilidade de que são feitas nossas identidades. Porque, não devemos, nem podemos, a partir de ínfimas taxas percentuais que aparentam ligar comportamentos a necessidades naturais, assumir desde logo uma base biológica, esquecendo a esmagadora percentagem que não demonstra esses comportamentos, fica o exemplo dado por Miller:
"In one important Canadian study, the likelihood that a preschool child would be fatally beaten by a stepfather was found to be more than 120 times greater than the likelihood of such a child being fatally beaten by a genetic father (...) By eliminating children not related to him, a stepfather can ensure that efforts to provide for his new family go only to his biological offspring, and not to the unrelated children of a previous mate of his new wife. Biology prevails (...) But it turns out that the real question is not why evolutionary pressures are powerful enough to induce murder, but rather why they are so incredibly weak that in reality they almost never do. The actual rate of stepfather infanticide in the Canadian study was 321.6 per million. So, in fact, the frequency of such tragedies was fewer than 1 in 2,500.
(...) If the drive to propagate one’s genes, which resides at the theoretical heart of evolutionary psychology, is so powerful, we should ask what other forces exist that seem to have checked that drive so dramatically."
Deste modo, Miller dá conta de um problema na teorização da psicologia evolucionária, mas abre a porta a uma outra abordagem bastante mais valiosa e que se liga à questão fundamental da consciência, o livre-arbítrio, para atacar outra abordagem da ciência que tem procurado evadir-se do redil da religiosidade. Aqui Miller ataca Sam Harris, entre outros, defensores máximos da ausência do livre-arbítrio, mas que como desmonta Miller não conseguem apresentar argumentos sustentáveis para tal.
Se sou condicionado pela evolução, pelos meus genes, para procriar, posso realmente ser condicionado a criar arte para me exibir e conseguir aumentar as possibilidades de procriar. Mas isso não quer dizer que a evolução condicione as minhas escolhas sobre os temas que escrevo, ou a simples razão por que escrevo hoje e não amanhã, ou porque simplesmente pinto ou esculpo. Sam Harris no seu livro “Free Will” acaba por se contorcer totalmente na tentativa para explicar porque não tem liberdade para fazer o que faz, mas depois decide quando quer escrever e não quer. Pior, Harris defende que a ausência desta liberdade poderia ser usada por nós para relaxarmos a nossa atitude e usar esse conhecimento de nós mesmos para assim decidir de modo mais inteligente e livre. Mas com isto Harris produz uma contradição como bem aponta Miller:
“Sam Harris (...) writes, “Free will is an illusion. Our wills are simply not of our own making. Thoughts and intentions emerge from background causes of which we are unaware and over which we exert no conscious control. We do not have the freedom we think we have.” (...) For Harris, the absence of free will is good news. It will lead to a more enlightened view of how to mete out punishment and structure rehabilitation for criminals once “their culpability begins to disappear.” It will reform politics by doing away with the myth of the self-made man and allowing each of us to see the conditions that brought us to our various stations in life. For Harris, the ultimate value of discarding free will is that “Getting behind our conscious thoughts and feelings can allow us to steer a more intelligent course through our lives.” But wait a moment. Harris pauses, apparently aware that he is about to contradict himself by citing the virtues of “deciding” that you do not have the freedom to decide anything. He then attempts a rescue in the form of the parenthetical afterthought that one can choose to steer that intelligent course, “while knowing, of course, that we are ultimately being steered.” The logical contortion here is striking.”
Neste sentido, e seguindo Miller, não o sigo quando ataca a obra “The Art Instinct” de Dutton, em que este defendeu exatamente a arte como resultante da seleção sexual, porque segundo Miller isso não explicaria a “Guernica” (1937) de Picasso. Concordando que não explica, em defesa de Dutton tenho de dizer não é essa a intenção da sua abordagem que pretendia apenas explicar o fim útil da arte, e não os frutos dessa génese que se vieram a demonstrar muito mais elaborados a um nível emocional mas especialmente cognitivo pela profunda racionalização envolvida, algo que é extremamente recente, surgido apenas no final do século XIX na forma do Modernismo. Posso aceitar que Dutton se excede ao propor uma teorização cabal da arte em 12 princípios, mas é o próprio Dutton que refere que estes não são estanques nem têm de estar todos presentes na análise de cada artefacto.
A argumentação de Miller prossegue depois com a defesa de uma suposta nobreza do Homo Sapiens pela singularidade no mundo animal, para no final abrir o jogo daquilo ao que realmente vem. Miller apresenta a sua grande proposta do seguinte modo: o Universo move-se para a tomada de consciência de si, e nós fomos o primeiro elemento deste universo a atingir esse estado. Ou seja, para Miller, a razão pela qual não nos devemos sentir órfãos é porque atingimos um zénite: “The human brain is fully capable of consciously recognizing its faults and correcting for them.”
Partilho algum deste otimismo, aliás se olharmos a tudo o aquilo que fazemos como espécie, e a arte pode aqui ser novamente convocada, já que o modernismo exemplifica isto na forma como a arte ganhou consciência de si e alterou radicalmente o modo da sua execução e fins. Se existe algo último, pode realmente ser esta nossa capacidade para darmos conta de nós mesmos. Contudo, fico reticente quanto a esta visão de Miller de que esse seja o fim de todo o Universo:
"It would be foolish to declare humanity the endpoint of evolution, the telos, or the goal, of history. Evolution goes on, and it continues to change the living world, ourselves included. But it is more than fair to ask whether the universe itself shows a tendency toward consciousness and self-awareness. We are, of course, a material part of that universe in every sense. We are conscious and self-aware. And, therefore, at least a small part of that universe has indeed reached that goal, if we may be bold enough to call it a goal. The nature of the universe’s journey to consciousness and its embodiment in human nature matters, and it matters in the deepest sense. It assigns meaning to our view of the world (...).
Our biological heritage is merely the beginning of what we can be, not the end of it. The understanding that we have our roots in the process of natural selection explains how our brains were shaped, but that does not undermine the independence of human nature or deny the reality of human knowledge and achievement. Evolution may explain the human need for art, music, religion, and even science, but it cannot explain those disciplines away. Each exists, in its highest form, as an expression of the best humanity can offer in making sense of this remarkable world.
Concordando na generalidade com estes dois parágrafos, tenho de dizer que, quanto mais leio sobre as outras espécies animais, mais considero que pouco destas nos diferenciamos. Quanto mais leio sobre a física do universo, mais consinto a ideia de que o universo, e nós parte deste, é feito de milhões de acasos. Quanto mais leio sobre a nossa biologia, mais aceito que as regras que regem o universo são as mesmas que regem tudo aquilo de que somos feitos. E é por isso que não tenho dúvidas sobre o livre-arbítrio, as regras e leis naturais condicionam, mas não estão estagnadas, a luta é uma constante, existe um choque contínuo de forças opostas que impedem o status quo e forçam a transformação. É isto que é a vida na Terra, no Universo, e nos nossos comportamentos.
Mas nada disto me garante que a nossa consciência seja algo único. Sim, a nossa capacidade para tomar consciência, para racionalizar os nossos instintos e emoções, parece realmente querer saltar para fora do circuito de causas e efeitos do processo evolutivo natural. Mas tenho extrema dificuldade em não lançar a dúvida de que é a nossa própria consciência quem produz esta ideia de singularidade de si mesma, faltando-nos um olhar externo e não interessado que possa realmente garantir esta análise. Isto surge de modo auto-evidente num dos últimos parágrafos do livro:
“We hold in our hands the power to determine whether we will turn out to be the heroes of our lives or if that task will fall to some other creature at some other time. That, I would suggest, is something that should fill us not only with a sense of responsibility but also with pride, and it should instill within us a sense of the grand and cosmic nature of every moment of the human experiment. We stand at center stage in the pageant of life. It is our time to shine, and the role we will play in the history of our planet and of the Cosmos itself matters beyond all measure.”
Miller, ou a consciência de Miller, está claramente aqui a tentar demonstrar a si mesmo a sua relevância e importância, justificando a sua permanência num suposto grande plano do Universo. Não digo isto por partilhar da visão contrária, niilista, mas porque tanto essa como esta de Miller chegam a mim como extremos. Tendo a olhar tudo em busca de um centro de apoio que sei ser sustentado por extremos, mas com a ideia de que aquilo que tende a vingar é a junção de partes de ambos desses extremos.
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