“As Primeiras Coisas” (2013) do português Bruno Vieira Amaral (1978) e “Antes de Partires” (2000) da irlandesa Maggie O'Farrell (1972) são obras que parecem não ter nada em comum além do facto de serem ambas primeiras-obras. Para mim, que as li em simultâneo, posso dizer que encontrei vários outros pontos de contacto, ainda que quando aprofundados resultem mais em contraste do que em similitude. No entanto, tratando estes pontos da abordagem e das competências de escrita dos autores pareceu-me suficientemente relevante agregar os dois num mesmo texto. Saliento ainda que ambas as obras foram premiadas com prémios nacionais para primeira-obra abaixo dos 35 anos, Amaral com o Prémio José Saramago, no valor de 25 mil euros, e O’Farrell com o Betty Trask Award, no valor de 20 mil libras.
Começando pela estrutura, ambas são fragmentárias, aproximando-se assim na estrutura, para depois numa análise mais próxima se separarem totalmente nos modos de conceção dessa fragmentação. O’Farrell não usa capítulos, divide apenas em 3 partes, mas cada parágrafo apresenta uma mudança de espaço e de tempo, podendo as personagens manter-se ou não. Já Amaral, não tem partes, mas divide o texto em dezenas de pequenos capítulos, todos situados no mesmo espaço e num tempo alargado, mas homogéneo, criando a fragmentação por via da introdução de novos personagens a cada novo capítulo. O’Farrell desafia o leitor continuamente a situar os personagens no tempo e no espaço, ajudando-o com a força da causalidade entre os eventos. Algo acontece, porque algo já aconteceu antes, ou se algo acontece, algo deverá acontecer. Amaral, por sua vez desafia a frustração do leitor ao quase não apresentar causalidade entre eventos, limitando-se a aproximar os capítulos e personagens por via do espaço de um bairro.
Na história, ambos tratam da melancolia da perda adulta, fazendo-o com traços autobiográficos fortes. A protagonista de O’Farrell perdeu o marido num acidente, e recorda o passado das diferentes gerações familiares, enquanto está em coma. O protagonista de Amaral perdeu a esposa num divórcio, e o emprego, voltando para a casa da mãe no bairro onde cresceu para recordar os vizinhos e amigos do seu passado. Ambos os romances apresentam uma lista enorme de personagens, contudo O’Farrell liga-os pelos laços sociais da família, enquanto Amaral os liga pelos laços da vizinhança.
Assim, temos uma estrutura em O’Farrell bastante superior, a roçar o brilhantismo não raras vezes, pelo modo como entrosa os eventos e consegue manter o leitor a par das diferentes linhas narrativas. Ao passo que Amaral não consegue ir além de uma estrutura de blogue, com capítulos encadeados de modo avulso, suportando-se nas pequenas histórias de cada personagem. Por outro lado, O’Farrell centra o cerne do seu conflito na genérica história da rapariga conhece rapaz, mero romance, enquanto Amaral constrói o seu motor narrativo a partir da génese histórica e peculiar de um bairro urbano criado do nada. No primeiro, temos os acasos do amor, dos encontros e reencontros e das mentiras e segredos que suportam ideais. No segundo, temos os acasos da vida que juntaram pessoas de culturas e mundividências totalmente distintas, obrigadas a abandonar ideias para poderem sobreviver e conviver.
Na escrita, Amaral produz belíssimos parágrafos, sustentando muitas das sequências com referências metafóricas a clássicos da literatura de grande envergadura, como “Divina Comédia” ou “Cem Anos de Solidão”. Já O’Farrell usa uma linguagem mais simples, sustentada na experiência do imediato e presente. Contudo se a eloquência de Amaral é superior, a mesma acaba por criar alguma esquizofrenia por contraste com a realidade vil, obscena e suja da realidade que vai apresentando. Assim, se O’Farrell apresenta uma escrita menos elaborada ela acaba sendo mais consentânea e coerente com o todo.
São duas obras de relevo, tendo em conta o facto de serem primeiras obras, ainda assim ambas apresentam problemas, não podendo dizer que uma é melhor do que a outra. Dizer ainda que os livros são imensamente marcados pelo género dos autores, tanto na linguagem como no modo de ver. O’Farrell apresenta um mundo no qual as pessoas parecem preocupar-se todas umas com as outras, pondo os sentimentos à frente da prática. Enquanto Amaral, apresenta um mundo de pessoas descartáveis, em que as emoções raramente são chamadas à discussão.
Nota final, Maggie O'Farrell é a autora do brilhante "Hamnet" (2020) (ver análise), por sua vez Bruno Vieira Amaral assinou a volumosa biografia de José Cardoso Pires, "Integrado Marginal" (2021).
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