Dizer que o Comunismo nunca existiu porque nunca foi implementado segundo a visão de Marx é uma ilusão em tudo semelhante àquela que diz que a Ditadura portuguesa nunca existiu porque Salazar não foi ditador mas "provedor de justiça", que salvou Portugal da ruína financeira e "viveu exemplarmente". Duas cantatas revisionistas que servem apenas para vender ideias que a prática demonstrou, preto no branco, como totalmente disfuncionais. Para o efeito, deixo excertos de várias obras, para que tirem as vossas conclusões.
“Havia um medo latente, que atravessava toda a sociedade. PIDE pronunciava-se em surdina. E bastava a palavra para nos imobilizar. A sua existência destruía grande parte das nossas vidas, espalhava o terror, esvaziava a comunicação com os outros e quase paralisava o nosso pensamento. PIDE e MEDO – quatro letras que marcaram o passado dos portugueses. Por uma razão ou outra, de quase todos, diria. Também com quatro letras se escreve LUTA. Nas situações a que aludo neste livro a luta está presente. Não será, porém, estranho que, em muitas memórias que lemos, esta pareça subvalorizada – a luta exigia sempre superar o medo e fazer face à PIDE. E, no entanto, o 25 de Abril foi, tão só, o momento histórico do parto de uma Democracia, gerada durante décadas de combates e com muitas vitórias sobre o medo.”
- “A Noite Mais Longa de Todas as Noites” (2018) de Helena Pato
"Como um polvo gigante, os tentáculos da STASI sondaram todos os aspetos da vida. Foram destacados oficiais a tempo inteiro para todas as grandes instalações industriais. Sem exceção, um inquilino em cada edifício de apartamentos foi designado como cão de guarda reportando a uma área representativa da Volkspolizei (Vopo), a Polícia Popular. Por sua vez, o agente da polícia era o homem da STASI. Se um parente ou amigo viesse passar a noite, era denunciado. Escolas, universidades, e hospitais foram infiltrados de cima para baixo (...) Médicos, advogados, jornalistas, escritores, atores, e figuras desportivas foram cooptados por oficiais da STASI, bem como por empregados de mesa e pessoal do hotel. Escutar o que se dizia em cerca de 100.000 linhas telefónicas na Alemanha Ocidental e em Berlim Ocidental, 24 horas por dia, era o trabalho de 2.000 oficiais."
- “STASI: The Untold Story Of The East German Secret Police” (1998) John O. Koehler
Como se poderá facilmente depreender, entre a PIDE e a STASI as diferenças resumem-se à evolução da tecnologia e técnica de espionagem que continuou a evoluir depois da revolução portuguesa em 1974 e até 1989.
Mas agora vejamos o que diziam as elites comunistas portuguesas em 1975, como Alexandre Babo que fundou as associações Portugal-URSS e Portugal-RDA, quando visitaram a RDA a partir do que se publicaria a obra "República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada":
“As histórias a respeito dos horrores passados na União Soviética já não eram engolidas facilmente, já não conseguiam engordar os produtores. O muro foi a um tempo uma fonte de lucro e um alimento para a propaganda anti-comunista e a insidiosa defesa do fascismo, mais ou menos encapotado.
(...) Até 1961, a fronteira aberta constituía um dos mais graves problemas da RDA (...) O Estado gastava milhões de marcos com a preparação técnica dos seus cidadãos, a quem o Ocidente oferecia salários de tal modo elevados que muitos deles não resistiam e abandonavam a sua terra, traindo vergonhosamente os seus companheiros. A ocupação e depravação moral da República Federal, sobejamente conhecida no mundo, era usada como forma de corrupção da juventude da RDA”
- “República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada” (1975) por Alexandre Babo
Ou seja, o comunismo não funcionava por causa dos outros. As pessoas não acreditavam na "verdade", eram corrompidas pela "mentira". Mas para Alexandre Babo o muro era apenas um detalhe, ora veja-se:
“As primeiras medidas foram a expropriação dos grandes latifúndios e das terras pertencentes a criminosos de guerra, sem qualquer indemnização. A decisão foi tomada democraticamente (...) O exemplo foi seguido nas outras províncias. As terras das organizações fascistas, bancos e grandes empresas industriais foram também expropriadas. (...)
- “República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada” (1975) por Alexandre Babo
Seguiu-se a cartilha:
"Os comunistas não se rebaixam a dissimular suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam à ideia de uma revolução comunista!"
- “O Manifesto Comunista” (1848) por Karl Marx
Mas o que viu mais Alexandre Babo na RDA:
“A classe operária com a criação das estações de ajuda técnica e maquinaria (MTS), criaram aos camponeses condições de vida e desenvolvimento altamente favoráveis. Em quase todos os centros populacionais se criaram estas estações de ajuda que alugavam máquinas aos camponeses a preços muito acessíveis. Sei que, tanto eu como os meus companheiros, nesta primeira viagem a Rostock, nos sentimos verdadeiramente emocionados ao entrar na casa de um camponês. Na nossa terra, sabemos como é. A incomodidade e o desconforto, quando não a miséria — terra batida e vida de mistura com os animais, sem condições mínimas de higiene. E é evidente que em nenhuma encontramos o uso dos meios mais normais do progresso — muito menos qualquer indício de vida cultural. Entramos na casa que nós indicamos — à sorte. Era a hora do almoço. Uma habitação que faria as delícias de qualquer família da média burguesia lisboeta. Alcatifada, acolhedora, bem mobilada, TV, biblioteca, maples numa óptima sala de estar. Um quarto para o casal — muito jovem — e outro para o filho. Cozinha e casa de banho.
(...) Em raros países se pode encontrar um nível de vida geral mais alto que na RDA (...) Assim, o cidadão da RDA vê os seus salários aumentados constantemente de acordo com o aumento da produtividade, não está sujeito à inflação capitalista, portanto adquire os produtos por preços fixados e consentâneos com o seu poder de compra. Paga por habitações cada vez melhores uma importância que em relação ao Ocidente é verdadeiramente insignificante.
Os seus períodos de férias aumentam e em condições cada vez melhores. Os prémios equivalem na prática a um 13.° mês. Para os seus filhos, têm creches, infantários, escolas gratuitas. Não há desemprego, não há o espectro constante nos países capitalistas do despedimento, da incapacidade de trabalho, do futuro dos filhos, da necessidade de amealhar. Amealhar para quê? O dinheiro não é fonte de receita ali. É um meio de aquisição de bens, daqueles que tornam a vida melhor, mais agradável de ser vivida. O cidadão da RDA, como de qualquer país socialista, não tem que levar os melhores anos da sua vida a não ter o que deseja, para sobreviver no fim da vida."
-- “República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada” (1975) por Alexandre Babo
Lendo este relato de Babo, em 1975, que português não gostaria de ter a vida de um alemão da Alemanha Oriental? O comunismo aqui descrito era um sonho. O povo tinha as mesmas condições da burguesia, seguindo Marx e a "abolição do sistema de trabalho assalariado" (1865), pois o dinheiro deixa de ser relevante porque "de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (1875), e tudo de modo natural e opcional:
“Estava muito interessado em ouvir o relato sincero de um camponês, proprietário individual, que me desse uma ideia da evolução social, através do seu caso pessoal (...)
Em 1952, quando aqui se iniciou o movimento cooperativo não via nisso qualquer vantagem. Sobretudo não percebia a razão por que devia entregar à colectividade a terra que tinha herdado dos meus pais e que nós tínhamos desenvolvido com os nossos braços. Ainda por cima, entre 1952 e 1960, todos nós, pequenos agricultores individuais, recebemos das estações de tractores um auxílio enorme. Toda a produção era vendida e nós tínhamos atingido um nível económico muito alto. A verdade é que, em certa medida; estávamos ricos. Mas, paralelamente, ia observando o desenvolvimento das cooperativas, as novas possibilidades técnicas e administrativas que se abriam, as vantagens obtidas por aqueles que trabalhavam ali, as suas garantias de segurança. Fazia-se uma grande propaganda para que aderíssemos à colectivização. Mas, sob o ponto de vista ideológico, a campanha foi difícil. O Ocidente, sobretudo através da televisão que nós ouvíamos, quer quiséssemos ou não, fazia tudo para nos perturbar o espírito.
Embora já soubesse a resposta, perguntei-lhe: Alguém terá saudades da propriedade individual? Alguém gostaria de voltar a esse sistema?
A reacção foi uma grande gargalhada, como se lhe fizesse a pergunta mais absurda.”
- “República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada” (1975) por Alexandre Babo
Era tudo excelente, tudo rico e opcional. Aliás, era isto que Tchernichevski defendia no seu romance “O Que Fazer. Histórias sobre o Povo Novo”, em 1863, que seria elogiado por Marx e defendido como central por Lenine:
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro."
O problema era mesmo só a televisão do ocidente que invadia as ondas hertzianas e queria destruir os seus sonhos. A STASI, a polícia securitária do Estado, nunca é sequer mencionada em todo o livro Alexandre Babo, e sobre a polícia regular, a VOPO, Babo dedica-lhe uma nota de rodapé em que diz: “A palavra «VOPO» é uma abreviatura de Volks Polizist (polícia do povo) com que os reacionários da Alemanha Ocidental pretendiam caluniar a RDA.”
Talvez tudo estivesse bem se as universidades e os seus professores fizessem o que era esperado:
“Cada docente tem que ser um pedagogo. O professor universitário deve impor-se pelo seu próprio exemplo. Não pode dizer a um estudante: — «Deves ser um bom socialista.» O ideal será poder dizer-lhe: — «Faz como eu.”
“Em todas as Faculdades, mesmo na de Teologia, o ensino do marxismo-leninismo foi introduzido, estudando-se em aulas teóricas e práticas, seminários, etc.”
- “República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada” (1975) por Alexandre Babo
Mas voltemos à comparação entre a PIDE e a STASI
“Bem mais de 100.000 cidadãos da RDA tentaram fugir através da fronteira interior da Alemanha ou do Muro de Berlim entre 1961 e 1988. Mais de 600 deles foram mortos a tiro pelos guardas de fronteira da RDA ou morreram de outras formas durante a sua tentativa de fuga. Afogaram-se, sofreram acidentes fatais, ou mataram-se quando foram apanhados.
-- “Victims of the Wall”, in Site da Câmara de Berlin
“Não tinha feito as contas mas tive de as fazer agora: diretamente provocadas pela PIDE, são 15 de 1945 a 74 – não dá uma por ano. Mas uma polícia brutal que utiliza armas... é evidente que, volta e meia…”
-- Irene Pimentel, em entrevista a propósito da sua tese de doutoramento “A História da PIDE” (2007)
A RDA era uma sociedade industrializada, mas destruída pela guerra teve de partir do zero, oferecendo assim todas as condições para implementar qualquer tipo de ideologia. De 1945 a 1961 implementou um sistema de comunismo livre, em que as abordagens foram dadas sempre como opção aos habitantes. Cada um poderia manter-se dono das suas propriedades, ou entregar-se às cooperativas, era uma opção pessoal. Mas o opcional não funcionou, foi necessário adotar a repressão, sendo o Muro a maior evidência física e inegável do total falhanço do Comunismo.
Em pleno século XXI não há qualquer desculpa para a defesa de qualquer uma destas abordagens políticas. Os avanços no domínio da psicologia e neurociências, com os modelos de Daniel Kahneman e Amos Tversky a demonstrar as razões do falhanço dos modelos dos economistas neoliberais ao assumirem que os seres humanos são seres puramente racionais. Enquanto os modelos motivacionais de Deci e Ryan, demonstram o falhanço dos modelos comunistas ao assumirem que o ser-humano pode prescindir da capacidade de planear e comandar a sua própria vida.
Acho que não há quem negue, nem os seus defensores, o carácter ditatorial do Estado Novo.
ResponderEliminarO que há é quem negue a existência de fascismo em Portugal porque o Estado Novo não cumpria todos os requisitos de um estado fascista à maneira de Hitler ou Mussolini e chame à URSS um regime comunista - que, à luz da ideologia marxista, nunca foi.
No caso ditatorial, nos tempos recentes não falta branqueamento, tenho duas referências no topo do texto, mas existem muitas, basta ler o trabalho de Jaime Nogueira Pinto, deixo só uma das suas obras: https://www.fnac.pt/Antonio-de-Oliveira-Salazar-O-Outro-Retrato-Jaime-Nogueira-Pinto/a25681
EliminarQuanto à ideologia comunista, não falo da URSS que tem uma história mais longa e complexa, mas da RDA o modo como emergiu como funcionou de 45 a 61, e depois até 89, dá para perceber o que aconteceu. É bastante evidente.
Os princípios estão lá, pode-se dizer que não está tudo, mas e porque havia de estar se a teoria partiu de especulação abstrata e não de dados empíricos? É o mesmo que dizer que os modelos dos economistas não resultam. Pois são modelos teóricos, a prática é aquilo que verdadeiramente conta.