setembro 30, 2018

Mais um Dia de Vida

É uma ótima leitura para quem como eu conhece pouco sobre a guerra em Angola, porque funciona como espécie de relato documental do período que mediou entre a saída dos portugueses de Angola e o início da República de Angola (1974-1975). Não é um livro de digestão fácil, coloca o dedo sobre muitas feridas, com culpas de todos os quadrantes.

Aquilo que talvez mais me impressionou, ou não, foi o facto de um país tão distante e num tempo ainda tão pouco global, estar a mercê de tantos interesses internacionais e ideológicos, tudo apenas e só porque sob o seu solo existia ouro negro. É muito triste verificar que uma das regiões mais ricas do planeta não se consegue erguer, não apenas por falta de edificação de quem lá vive, mas também porque a quem está do lado de fora isso é o que menos interessa.

"E aí vi montanhas impressionantes de caixotes, empilhados até alturas perigosas, sem qualquer sinal de movimento, abandonados, como se não pertencessem a ninguém." p.37

Para nós, portugueses, o livro tem particular interesse, porque escrito por um jornalista polaco sem interesses diretos no território, oferecendo-nos uma leitura dos impactos da nossa presença no país, e que nos obriga a refletir sobre aquilo que fomos e somos enquanto nação. Deixo algumas linhas:

“Este país está em guerra há quinhentos anos, desde que os portugueses chegaram. Eles precisavam de escravos para o tráfico, para exportar para o Brasil, para as Caraíbas e para o outro lado do mar em geral. De toda a África, Angola foi a região que maior número de escravos forneceu para esses países. Por isso é que chamam ao nosso país a Mãe Negra do Novo Mundo. Metade dos camponeses brasileiros, cubanos e dominicanos descende de angolanos. Esta terra foi em tempos um país populoso, estabelecido, e depois esvaziou-se, como se tivesse havido uma praga. Angola continua deserta até aos dias de hoje. Centenas de quilómetros e nem uma única pessoa, como no Sara. As guerras de escravos continuaram durante trezentos anos ou mais. Era um bom negócio para os nossos chefes. As tribos mais fortes atacavam as mais fracas, faziam prisioneiros e punham-nos à venda. Por vezes, tinham de o fazer, para pagar os impostos aos portugueses. O preço de um escravo era determinado de acordo com a qualidade dos seus dentes. Eles arrancavam os dentes ou limavam-nos com pedras, para terem um valor de mercado inferior. Tanto sofrimento para serem livres. De geração em geração, as tribos viviam no receio umas das outras, viviam no ódio. As campanhas militares realizavam-se na época seca, porque as movimentações eram mais fáceis. Quando as chuvas terminavam, toda gente sabia que começariam os tempos da desgraça e de caça às pessoas. Na época das chuvas, quando o país se afogava em água e lamas, as hostilidades cessavam. Mas os chefes ocupavam o tempo a magicar novas campanhas e a arrebanhar novas forças. Tudo isto é recordado por toda a gente até aos dias de hoje, porque, no nosso modo de pensar, o passado ocupa mais espaço do que o futuro.", Kapuściński, “Mais um Dia de Vida - Angola 1975”, Tinta-da-China, Lisboa, p.54
Fotografia da escultura "Nkyinkim" de Kwame Akoto-Bamfo, instalada no The National Memorial for Peace and Justice, inaugurado em Abril 2018 em Montgomery, Alabama, EUA.

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