março 04, 2023

O Mago do Kremlin (2022)

“O Mago do Kremlin”, de Giuliano da Empoli, é um romance histórico-político centrado num dos mais relevantes focos da cena política global atual que domina não só as atenções políticas mas as de toda a sociedade, e que é o esforço de manutenção do Imperialismo Russo. Empoli é professor de Ciência Política na Sciences-Po em Paris, é presença assídua nos média italianos e franceses como comentador de política, tendo escrito mais de uma dezena de livros de ensaio, sendo este o seu primeiro romance. O livro ganhou Grande Prémio de Ficção da Academia Francesa 2022 e foi finalista do prémio Goncourt 2022. Esta breve apresentação será suficiente para dar conta da relevância do livro, mas não quero deixar de dizer que está muito bem escrito; e que a ficção apresenta um enorme nível de verossimilhança.

"No fundo, creio, mais uma vez, que a culpa é da biblioteca do meu avô. Ela deu­-me a consciência de não estar no centro do tempo. Por mais excitante que seja, a nossa época é apenas a enésima versão da comédia cujas ínfimas variações se desdobram ao longo dos séculos."

No detalhe, queria ter gostado mais, mas para isso precisava de ter sido mais surpreendido, e aqui em parte é culpa minha, todo o meu interesse na última década em ler autores russos, mas também ler sobre os efeitos do fim da URSS, tanto na literatura, como nos jornais ou cinema. Por isso, também posso dizer que existe um enorme contacto entre o que vai sendo ficcionado e a realidade. Mas senti falta de algo mais profundo que desconhecesse sobre os efeitos da transição do comunismo para o capitalismo, e desse para Putin. Ainda assim, tive o enorme prazer de conhecer em maior profundidade um dos maestros por detrás do mundo de Putin, por detrás de alguns dos grandes episódios recentes da história da Rússia, desastre do submarino Kursk, aos Jogos Olimpicos de SOCHI, e em partilhar à criação da IRA (Internet Research Agency), até à passagem de testemunho do alcoólico Ieltsin para o autoritário Putin. 

O livro foca-se na história de Vadim Baranov, que é um personagem decalcado de Vladislav Surkov, um dos principais assistentes de Putin, apelidado de ideólogo do regime, um mago da propaganda, ou como lhe chamamos hoje, um spin doctor. O título não é meramente ilustrativo, Surkov criou uma designação própria para o reinado de Putin, que apelidou de “democracia soberana” e que serviu na elevação e consagração de Putin a Czar da Rússia.

Vladislav Sourkov e Vladimir Putin, em 2012

A Democracia Soberana de Surkov foi definida pelo ocidente, em dois pontos: assemelha-se em tudo às democracias ocidentais; e que esta alegação deve ser aceite, ponto. Assim, na cena internacional, ou nacional, não é dado qualquer espaço para questionar a “democracia” russa, seja o modo como o Estado controla todos os canais de comunicação, seja a ausência de um sistema judicial independente, seja o aprisionamento de todo e qualquer opositor político. É dito, frontalmente, que se vive em democracia, apesar de não existirem os pilares mínimos que a garantam, além de uma espécie de eleições aparentemente livres.

No livro, Empoli cria toda uma trama ficcional suportada nos principais agentes políticos dos últimos 20 anos, desmontando como foi possível chegar aqui, o que acaba a explicar em detalhe o que se passa atualmente na Invasão da Ucrânia. Em essência, Empoli defende Putin como alguém emanado do povo, alguém que viveu o auge do domínio global, e sofreu depois os efeitos da destruição da União Soviética, encarnando em si, o espírito salvador da Rússia. De certo modo, analisada a situação, se Putin é autoritário, é porque o povo assim o exige! O povo exige ordem contra o caos. O povo exige a “grandeza”, nem que seja assente na opressão, contra a “pobreza” oferecida pela liberdade. 

A propósito de toda esta discussão sobre o autoritarismo e dos desejos do povo, existe um momento no livro em que Empoli discute a enorme influência mantida por Estaline, que nem Putin conseguiu apagar, discutindo os efeitos de um concurso televisivo. Em 2008 a televisão estatal promoveu um concurso televisivo para eleger o maior herói da história da Rússia, e que se tornou polémico, por se desconfiar de uma intervenção na votação, por parte do governo, para que Estaline não ganhasse. Em Portugal, a RTP tinha promovido um concurso exatamente igual, 2 anos antes, em 2006, que nos deu um resultado em tudo semelhante, com Salazar em primeiro lugar

Para reflexão, deixo um seguinte extrato do livro:

"Os computadores foram desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial para decifrar os códigos inimigos. A Internet como meio de comunicação em caso de guerra nuclear, o GPS para localizar as unidades de combate, e assim sucessivamente. Tudo isso são tecnologias de controlo concebidas para sujeitar, não para tornar livre."

(...)

"Todos os sacrifícios, todos os inúmeros atentados à liberdade, se justificavam assim: a defesa de uma liberdade maior, a da mãe pátria. O KGB tinha projectado, nos anos cinquenta, um sistema para registar todas as relações de cada cidadão soviético. O vertushka do meu pai era o símbolo disso. Mas o Facebook foi muito mais longe.  Os californianos ultrapassaram todos os sonhos dos velhos burocratas soviéticos. Não há limites para a vigilância que eles conseguiram instaurar. Graças a eles, qualquer momento da nossa existência se tornou uma fonte de informações."

Sem comentários:

Enviar um comentário