abril 30, 2021

Le Guin e o Conservadorismo dos sistemas Anarco-comunistas

“Os Despojados” (1974), de Ursula K. Le Guin, é uma obra de excelência e obrigatória por ser capaz de gerar uma simulação narrativa de um universo no qual funcionam em simultâneo três modelos de organização social — capitalista, comunista e anarquista — não defendendo nenhum dos modelos, apresentando as suas componentes boas, mas evidenciando também os problemas de fundo de cada um. No final do livro sabemos algo, nenhum sistema é perfeito, nenhum sistema responde às ânsias de cada ser individual. Em todos, é necessário fazer cedências a propósito do que acreditamos Ser para podermos Sobreviver.

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

Sumariamente, o livro é de 1974 e apresenta uma realidade futura ou alternativa com base numa metáfora da realidade na Terra nessa época. Assim, temos um planeta, Urras, parecido com a Terra atual, e uma Lua, Anarres. Na Terra o sistema dominante é capitalista, existe ume estado forte o A-IO, uma espécie de EUA, e existe um outro país, o THU, uma espécie de URSS. Na Lua vivem os Anarres, uma comunidade anarquista que se fartou das regras e leis de ambos os modelos, tendo ali criado a sua sociedade isolada, que se aproximam de múltiplos experimentos de criação de utopias, tanto nos EUA como na Europa (algumas ainda estão ativas). Existe ainda um 3º grande estado em Urras, o Benbili que dá corpo ao designado Terceiro-mundo nos anos 1970, e que servem de cenário à Guerra Fria da época, entre A-Io e Thu. Os Anarres conseguiram algum equílibro ao fim de 170 anos isolados por um muro que protege a aterragem de naves do planeta de Urras, para algumas trocas entre mundos. O livro desenrola-se a partir do momento em que um elemento de Anarres, o físico Shevek, decide que é tempo de voltar a contactar com o mundo exterior.

Edição portuguesa

Apesar de se darem indicações sobre os 3 sistemas, na verdade Le Guin dedica quase todo o livro à discussão de um deles, Anarres, a comunidade utópica anarquista, apresentando o sistema capitalista mais por oposição, e o comunista em apenas duas ou três passagens. Percebe-se porque o faz, o capitalista é a cultura bem conhecida e emanada dos EUA, o comunista é o estado fechado e opressor bem representado pela URSS, durante a guerra fria. Os anarquistas são a 3ª via, a alternativa a ambos, a utopia sobre a qual Le Guin se debruça. Obviamente que não o faz a partir do zero ou da sua própria imaginação apenas. Os fundamentos desta sociedade são decalcados do pensamento de dois ideólogos anarquistas, o russo Peter Kropotkin (1842-1921) e a lituana, emigrada nos EUA, Emma Goldman (1869-1940). Assim, Le Guin usa as teorizações para construir os alicerces da comunidade, e depois coloca em marcha a sua imaginação para dar vida a histórias de pessoas, crianças e instituições, criando um mundo funcional e credível.

Devo dizer ainda que o espírito anarquista está na base do espírito do manifesto comunista, com a sede de revolução. Kropotkin foi convidado para ser ministro do governo russo em 1917, tendo recusado em defesa da integridade dos ideias defendidos. Mas o ideal revolucionário, e a defesa das ideias anti-capitalistas assentes em economias descentralizadas, baseadas na mutualidade ainda que possam depois evoluir, fazem parte da matriz de ambos. Os sistemas anarquistas tendem a evoluir para o que se denomina de anarco-comunismo, sendo essa a melhor designação para a sociedade que existe no momento em que entramos na história em Anarres. Já os sistemas comunistas degeneram em autoritarismo, a partir do momento que tentam implementar os seus próprios estados, reguladores das normas societais ( ver "As cantatas do Comunismo e Fascismo portugueses").

Aliás, quando Shevek é confrontando pelo convite de Chifoilisk para que desista dos capitalistas e embarque com ele para Thu, a URSS daquele planeta, este responde-lhe que não está interessado num país em que o estado é ainda mais ostensivo que no capitalista, dizendo-lhe que os comunistas “Temem-nos. Temem que ressuscitemos a revolução, a revolução antiga, a verdadeira, a revolução pela justiça que vocês iniciaram e abandonaram a meio do caminho.”

Mas é este ponto o central da minha leitura. Para estes modelos alternativos à criação de uma centralidade estatal e leis parece só existir uma forma possível, a Revolução continuada. Aliás, veja-se a caracterização de Anarres, no texto do The Guardian, um texto manifestamente de esquerda que começa por dizer "a velha esquerda tem muito para nos ensinar", que diz "na altura em que o livro abre, as coisas já calcificaram. A revolução já não está a avançar". Ou seja, a ideia, que é a aquela que tenho da Anarquia (e erradamente durante muito tempo não tive do Comunismo, mas são iguais), e já não é aquilo que existe em Anarres porque já se parece mais com um sistema anarco-comunista, é a de Revolução permanente,  ou de Caos e Entropia. 

“Não podem comprar a Revolução. Não podem fazer a Revolução. Apenas podem ser a Revolução. Esta, ou está no vosso espírito, ou não está em lado nenhum.” Discurso de Shevek em Urras

Enquanto tudo se move num caos, é fácil vender a ideia de ausência de leis, mas nós não somos átomos, elementos sem Consciência, nós paramos no tempo, e pensamos no passado, presente e futuro. Shevek apresenta muito bem isto por via da sua grande teoria da Física, em que dispõe o problema de base das sociedades humanas como estando presas à linearidade do tempo, em que o Humano depende do seu passado para realizar o presente e prever o futuro, quando em termos físicos tudo é circular, não existe antes, nem depois, nem agora. Tudo é tudo, simultaneamente. 

E é por isso que o livro de Le Guin é tão bom. Seguindo a Física, estaríamos em sincronia com o universo, sempre em revolução, em direção à entropia. Mas seguindo a Psicologia, aceitando a ideia de que somos dotados de uma Consciência, que para existir tem de organizar narrativamente a realidade em que vive para garantir Significado, precisamos de paragens para contemplar, respirar e refletir sobre o que foi, para compreender o que é, e sentir que podemos avançar para o que há-de ser. A sociedade construída na Lua, um lugar inóspito, é apenas possível por via da exploração de um tipo de uma condição que cércea a consciência humana: o Sofrimento.

“— É o nosso sofrimento que nos une. Não é o amor. O amor não obedece à mente, e transforma-se em ódio quando é forçado. Os laços que nos unem estão para além da escolha. Somos irmãos. Somos irmãos naquilo que partilhamos. Na dor, que cada um de nós tem de sofrer sozinho, na fome, na pobreza, na esperança, conhecemos a nossa fraternidade. Conhecemo-la, porque tivemos de a aprender. Sabemos que não existe ajuda para nós que não seja a de uns aos outros, que nenhuma mão nos salvará se não estendermos a nossa própria mão. E a mão que vocês estendem está vazia, tal como a minha. Vocês não têm nada. Nada possuem. Vocês são livres. Apenas têm aquilo que são, e aquilo que dão.”

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

O sofrimento e o nada são a base da premissa — como diz o ditado: "No Hope, No Fear". Estas são as condições necessárias para abraçar uma sociedade sem lei, sem status quo, sem civilização. Porque no fundo é isso que promovemos quando defendemos o caos permanente e a ausência de lei, é o fim das relações humanas que propiciam a criação de algo para além de nós mesmos.

Anarres, com as suas máquinas e sistemas computacionais deixados pela civilização anterior, fez-me lembrar alguns países de África que abraçaram a causa comunista após a independência colonial, e passadas décadas, continuam dependentes de estruturas e tecnologias deixadas pelos colonos. A inovação humana pela expressividade e exteriorização das competências humanas estala, sendo substituída pela simples sobrevivência em resposta ao sofrimento. Luta-se todos os dias para estar vivo. E o pior, é que nem por isso se libertam do que dizem ser amarras, as leis humanas condicionantes, como acabamos a perceber pelo desânimo do próprio Shevek:

“A consciência social domina completamente a consciência individual, em vez de estar em equilíbrio com ela. Nós não cooperamos — nós obedecemos. Tememos ser marginalizados, que nos chamem preguiçosos, disfuncionais, egotizadores. Tememos a opinião do nosso vizinho mais do que respeitamos a nossa liberdade de escolha. (...) Fizemos leis, leis de comportamento convencional, construímos muros em redor de nós mesmos e não os conseguimos ver porque eles fazem parte do nosso pensamento (...) a convenção, o moralismo, o medo do ostracismo social, o medo de ser diferente, o medo de ser livre! ”

No fundo, o que o livro de Le Guin faz muito bem é mostrar o quão conservadoras são todos estas utopias assentes em ideais de regresso às formas naturais, aparentemente livres e espontâneas, mas na realidade anti-progresso. Porque não existe progresso no caos, sem lei inscritas capazes de suster os ganhos dos progressos e passá-los às gerações seguintes, por forma a que estas voem livremente por meio do conhecimento criado por todos os que vieram antes deles. Porque viver momento a momento não chega, é esse o peso de carregarmos uma Consciência.

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