Chego a “La Familia Grande” (2021), de Camille Kouchner, depois de ter lido “Le Consentement” (2020) e de ter percebido que o fenómeno #metoo demorou, mas chegou a França, não na sua forma convencional, usando as redes sociais, mas por via da literatura. O relato é aqui tão, ou mais, cru que no livro de Vanessa Springora. Começa-se a ler e não se consegue parar, o voyeurismo e a expectativa tomam conta de nós. Aqui a família de suporte é bastante menos estereotipada, existem recursos, e acima de tudo educação certificada com os mais altos pergaminhos. Mas, nada disso serve para evitar o pior. No final, inevitavelmente, e mais uma vez, somos obrigados a questionar-nos sobre o valor da Educação que tanto prezamos, sobre o Humanismo que tanto apregoamos. No final, mais uma vez, somos esbofeteados pela luta entre o racional e o emocional, ou, entre a consciência e o instinto. Este livro, pelos personagens que dele fazem parte, torna estas questões brutalmente presentes, obrigando-nos a mergulhar no mundo de valores em que nos habituámos a acreditar para tudo questionar.
Camille Kouchner (1973) é filha de duas altas personalidades da sociedade francesa. O pai, Bernard Kouchner, foi um dos fundadores das organizações internacionais “Médicos Sem Fronteiras” (1971), e dos “Médicos do Mundo” (1980), e desde então passou por vários governos como Ministro da Saúde e Negócios Estrangeiros. A mãe, Évelyne Pisier, nasceu na antiga Indochina francesa, nos anos 1960 tornou-se amante de Fidel Castro, volta para França onde se doutora em Ciências Políticas, sendo uma das primeiras mulheres do país a fazer a sua agregação na área, tornando-se próxima da alta elite política francesa. Durante 14 anos, ambos construíram um mundo de feitos e conquistas no país e no mundo, depois separaram-se, para dar lugar a Olivier Duhamel, professor de Direito, filho de mais um ministro do passado. Duhamel viria a tornar-se numa personalidade da sociedade francesa tão incontornável como Kouchner, tendo ambos sido eurodeputados, um a seguir ao outro, sempre presentes nas televisões e nos jornais. O incesto, depende da perspectiva, já que se trata de um padastro, mas é sempre crime de pedofilia, é realizado por Olivier Duhamel sobre o irmão gémeo de Camille.
Camille começa o livro pela história da sua mãe, que morreu em 2017, diga-se que grande parte do livro é sobre a sua mãe, dando conta da educação recebida em casa, fazendo ênfase num ponto central, a cultura de esquerda, progressista e a liberdade sexual e o feminismo. Tudo isto nos parece bem, mas começa a parecer estranho quando tudo se dá num lar endinheirado, fazendo com que por várias vezes, na leitura, sintamos o queixume como algo vazio, originário na falta de problemas sérios. Mas é a própria Camille que se apercebe disso mesmo, e acaba por intitular todo aquele discurso como Esquerda Caviar. Com isto, passei boa parte do livro a questionar ambos os lados da moeda: valores e dinheiro; liberdade e libertinagem; progressismo e niilismo.
Os dois avós suicidam-se, com 2 anos de diferença, no final dos anos 1980, e isso abala o mundo da mãe e filha, servindo de apoio ao questionamento desta sobre o que pode ser dito, e o que não pode, sem saber que consequências poderá acarretar sobre a sua mãe. Mas passados 20, 30 anos, o discurso continua igual, e nada muda. Quando Camille engravida, e a mãe vem conhecer o neto, acontece o seguinte diálogo:
Mãe: "Porque estás a amamentar? Forçaram-te? Não tens medo de perder a tua liberdade?"
Filha: “Adorei engravidar e adoro amamentar. Não te preocupes, não há nada de ideológico nisto, é apenas uma declaração de amor à liberdade".
Mãe: "A liberdade está em poder escolher não se importar.”
Fez-me viajar até “Madame Bovary”, questionar mais uma vez o meu progressismo, que para muitas pode parecer conservadorismo. Mas, para mim “não se importar” não passa de uma imitação do comportamento reles do homem do passado. E progredir não se faz pela conquista de tudo igual, mas pela conquista de tudo o que é bom em modo igual, e por fazer desaparecer aquilo que é mau. Porque ser-se livre, e viver a liberdade, não tem nada que ver com sermos egoístas a ponto de desprezarmos os nossos filhos ou passarmos pela espuma da vida dispondo sempre de serviçais e escravos para nos limpar o cu.
Neste livro, Camille parte a louça toda, e tal deve-se apenas à sua mãe que tendo descoberto tarde, mas tendo descoberto o que aconteceu com o seu filho de 14 anos às mãos do seu segundo marido, preferiu viver das aparências, escolheu o seu belo marido e abandonou os seus filhos. No final, só consigo ver pessoas feitas de ilusões. Uma liberdade que se faz apenas de ambição e poder. Ter perdido, ambos, os pais por suicídio, de nada parece ter servido. A cegueira pela carreira, só o reconhecimento e a fama importam. Chegar aos alegados pontos mais elevados da sociedade, nunca parar, por nada, menos ainda pela família, para se chegar ao topo e nunca ser esquecida.
Depois de terminar a leitura deste livro, vi que a mãe de Camille tinha deixado um romance sobre a sua vida, escrito em conjunto com uma amiga jornalista, a quem pediu, antes da última cirurgia, aconteça o que acontecer, promete que publicas o livro. Ainda li algumas páginas do mesmo online, mas não consegui interessar-me por ler mais. Desde logo o título, "E de Repente, a Liberdade" (2017), por tudo o que aqui a liberdade representa. Camille passa todo o livro a louvar a mãe, como se percebesse o impacto do que estava a fazer, mas as ações deixam impressões muito mais fortes do que meras palavras. A carta escrita por Camille à sua mãe, e deixada no final do livro, é lancinante.
“La Familia Grande” e “Le Consentement” são apenas dois livros, mas os relatos confessionais no modo romanceado abrem espaço para tantos, todos aqueles que têm sofrido, se poderem identificar, e talvez ganharem força para darem o passo que lhes falta. São dois livros que dão conta do lado feminino e do lado masculino, evidenciando que se a opressão sexual é maioritariamente cometida por homens, os alvos variam e tanto podem recair sobre uma, como sobre um, adolescente. Mas o silêncio nunca pode ser opção.
Nota final: tal como em “Le Consentement”, os crimes prescreveram, mas existe sempre espaço para a condenação pública, e isso está a acontecer neste momento na sociedade francesa. Ficam algumas notícias recentes: do Diário de Notícias, 14 janeiro 2020, ""Toda a gente sabia." O escândalo de incesto que abala a elite francesa" e do Le Monde, 4 janeiro 2020, « La Familia grande », autopsie d’un inceste.
Sem comentários:
Enviar um comentário