janeiro 17, 2020

O arrepio que vem do Brasil

Há uns meses estive para fazer aqui um post sobre o filme "Menino 23", um documentário brasileiro de 2016 que dá conta da existência de células nazis no Brasil nos anos 1930. Acabei não o fazendo, porque o nazismo é por demais vezes citado para tudo justificar e por acreditar que é algo que não devemos banalizar. Contudo, nesta data, em que o Secretário da Cultura do Brasil, o maior responsável pela Cultura daquele país, lança um comunicado em vídeo, na rede, no qual ele próprio não só plagia textos de Joseph Goebbels, mas imita parâmetros estéticos de forma e conteúdo da propaganda Nazi, não devemos calar.
Repare-se na encenação do local — bandeira com fitas de honra, cruz patriarcal, fotografia do presidente e o resto limpo e austero — e depois na assertividade da linguagem corporal, facial e verbal, como toda a performance emula um tom de certeza absoluta, de Autoridade e Verdade, e ao mesmo tempo de ameaça, pronto a usar da força. Este secretário está longe dos tiques afetados de Goebbels (deem-lhe tempo e eles surgirão) mas a abordagem é a mesma, uma postura de afirmação de verdade única e prontidão para a confrontação.

Falar aqui da evocação da religião ou de Deus é totalmente secundário, muito mais grave é o uso da cruz patriarcal (para se colocar no topo hierarquia) juntamente com o reclamar de "lealdade" e "autossacríficio" para subjugar o povo, evidenciando quem domina, quem deve ser seguido. A partir daqui dizer-se então:
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.Roberto Alvim, secretário da cultura do Brasil, 16 janeiro 2020
É arrepiante o que diz e quer dizer, mas é muito mais arrepiante saber quem o disse antes e em que condições e a que conduziram essas frases:
"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.Joseph Goebbels
Diz o secretário num tweet (porque não responde à imprensa), que "Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém". Bem, posso dizer que isto é o costumam responder os alunos quando são apanhados a plagiar. O problema é que não é só a forma do texto, são as ideias completas, como vemos no resto do texto:
"A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte.
(...)
São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira."
Mas se restarem ainda dúvidas, peço-vos que atentem no facto do comunicado, apesar de provir de um membro do governo, vir com banda sonora musical, o que já por si configura a comunicação como propaganda política e não como comunicação de estado. Mas verificando que a música que corre por debaixo é uma ópera ("Lohengrin") de Richard Wagner, torna-se impossível não ver aqui a total orquestração estética da experiência propagandística nazi.

É claro que a direita brasileira pode evocar o facto dos anteriores governos, nomeadamente Lula, terem andado de mão-dada com ditadores de esquerda como Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas um erro não se conserta com outro erro. Menos ainda, quando se usa o pior que a História da Humanidade já conheceu, os causadores da II Guerra Mundial, o acontecimento mais mortífero de sempre perpetrado pela nossa espécie (Sapolsky, 2017).
Imagem do documentário "Menino 23" que podem ver completo, ainda que sem grande qualidade, no Youtube.

Fontes da notícia: 
O Globo, 16 e 17 janeiro 2020 
BBC Brasil, 17 janeiro 2020

2 comentários:

  1. Sobre o último parágrafo, indico a presente leitura: https://pilulas-diarias.blogspot.com/2020/01/fascismo-entender-para-combater.html

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