setembro 25, 2020

Do poder, autoridade e responsabilidade

"O Consentimento" ("Le Consentement") (2020) é um livro de memórias que teve o impacto de uma bomba na sociedade francesa aquando do seu lançamento em janeiro de 2020, e que sai na próxima semana em Portugal. O livro de Vanessa Springora, editora literária francesa com 47 anos, dá conta de uma fase na sua vida, no início dos anos 1980, em que se viu envolvida sexualmente com o escritor francês, Gabriel Matzneff, reconhecido em França mas praticamente desconhecido no exterior, na altura ela com 14 anos, ele com 50. Matzneff não era apenas reconhecido como escritor, em surdina dizia-se também que era pedófilo, o que nunca impossibilitou a continuada publicação da sua obra pelas maiores editoras francesas, a receção de prémios de carreira e até subvenções estatais. Foi preciso esperar mais de 30 anos e por um livro de memórias para a sociedade francesa acordar.

O livro de Springora está muito bem escrito, é curto, não se perde em detalhes, vai direto ao assunto após uma breve contextualização familiar. Nota-se uma enorme atenção ao modo como tudo é dito, tanto na identificação de pessoas, como de lugares e instituições. Springora é uma editora, sabe o que faz, e aquilo que não se deve fazer. Não existem descrições gráficas, que seriam expectáveis num livro que é quase como um grito de revolta contra o seu país, tanto para exposição de raiva, como de vingança, assim como pela tentativa de trazer para junto de si as pessoas por via da tragédia. Mas ela não deixa de nos agarrar, pelo caminho contrário, expondo o seu sentir, antes, durante e depois. Questionando quem devia ter agido durante e desde então.

Springora escreve com enorme sabedoria, com enorme sensibilidade, vai ao fundo da questão que não é o pedófilo em concreto, mas o efeito do pedófilo sobre a criança que se é quando se tem 14 anos. O título fala de consentimento, mas que consentimento pode dar quem não tem direito a conduzir um carro ou a votar? E como pode a sociedade menosprezar e atacar quem por lá passou, sem se dignar a tudo fazer para defender estas pessoas e ajudá-las a sair do buraco para onde foram atiradas?

Não me apetece falar da história do escritor, a quem nada reconheço, nem sequer conhecia o seu nome antes de ler este livro. Dos 50 livros que terá escrito, só um surge amiúde referido quando se fala de si, "Les moins de seize ans" ("Os menores de 16 anos") de 1974. Um livro em que defende, de forma lasciva e atroz, o direito ao "amor" por crianças, rapazes e raparigas, mas que lhe serviria para defender, literariamente, aquilo que fazia na vida real, f@der jovens dos 8 aos 14 anos, em França e nas Filipinas. 

Aquilo de que tenho mesmo de falar, e que foi o que me levou a ler este livro, é a razão pela qual a sociedade francesa permitiu a um personagem desta envergadura reinar — escrever crónicas em grandes jornais, ser entrevistado pelas televisões, ganhar prémios nacionais — sem nunca ser questionado. É preciso regressar a Maio de 1968, para perceber como este dissimulado conseguiu tamanho feito. Num tempo em que era "Proibido Proibir" ele soube envolver-se na luta pela libertação sexual para defender o seu fetiche, e com isso levar nomes de peso atrás. Confesso que fiquei incomodado ao descobrir, neste livro, que manifestos de Matzneff, em defesa da despenalização das relações sexuais entre menores e adultos, lançados no final dos anos 1970, receberam o apoio de alguns dos monstros sagrados da elite francesa — Roland Barthes, Gilles Deleuze, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Jacques Derrida. Salva-se o facto de saber que entre os poucos que recusaram assinar estiveram Marguerite Duras e Michel Foucault. A influência de toda esta elite faria com que o personagem conseguisse chegar aos favores de poderosos, na política François Miterrand, no dinheiro, o riquíssimo Yves Saint Laurent. 

Repare-se que isto não são histórias de 1700, ou 1850, nem sequer 1950. Estamos a falar dos anos 1980. E Springora não foi a única, como se sabe mais no final do livro, existiu também uma Nathalie, e sabe-se agora por via do NYT, que existiu antes de Springora, Francesca Gee, para não falar das crianças em Manilla. Quantas mais existirão? A polícia francesa abriu um inquérito para apurar sobre mais vítimas. 

"Vanessa Springora Acreditamos em Ti"

O personagem tem agora 83 anos, tinha doado todos os seus manuscritos à biblioteca nacional francesa para serem preservados "para a eternidade". Nesses incluiam-se cartas escritas pelas mãos das meninas que violou, histórias pessoais e fotografias deslas que usou para escrever vários dos seus pseudo-livros. Temos de agradecer a Springora a coragem para obrigar toda a sociedade francesa a tirar a cabeça da areia, e a rever todo mal feito, porque como ela diz:

A longo de anos circulei dentro da minha própria jaula, cheia de sonhos de assassinato e vingança. Até ao dia em que a solução finalmente se apresentou, ali, na frente dos meus olhos, tão óbvia: agarrar o caçador na sua própria armadilha, prendê-lo num livro.


Mais info:

Dossier Le Figaro, 2020 

A Pedophile Writer is on Trial, NYT, 02.2020

Quand des intellectuels français défendaient la pédophilie, France Culture, 01.2020

Long-Silenced Victim of a Pedophile Writer Gets to Tell Her Story, NYT, 03.2020

Affaire Matzneff : son livre “Les moins de seize ans” retiré de la vente, la police s’en mêle, Telerama, 01, 2020

French publishing boss claims she was groomed at age 14 by acclaimed author, The Guardian, 27.12.2020

33 anos depois, Vanessa acusa escritor famoso de pedofilia, Sábado, 01.2020

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