Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?
Antes disso, dizer que a escrita de Slimani é virtuosa. Houve momentos em que a senti como uma máquina, tal da sua intensidade e velocidade, mas não uma máquina desprovida de sentir, uma máquina capaz de produzir ritmo, vida, de onde brotam tanto a calma como a torrente. Por aí, aproximo-a de Jonathan Franzen e Zadie Smith. É um enorme prazer lê-la, além de nos manter sempre interessados e focados, dando pouco espaço a desvios, ampliando e aprofundando sempre o cerne dos seus personagens e eventos, usando a escrita para descascar o mundo ficcional que consegue fazer parecer não ter fundo.
“Com dois filhos, tudo se tornou mais complicado: ir às compras, dar o banho, ir ao médico, arrumar a casa. As facturas começaram a acumular-se (...) À noite, Paul dormia ao lado dela o sono pesado de quem trabalhara o dia inteiro e merecia um bom descanso. Ela deixava-se consumir por azedume e pesar. Pensava no esforço que fizera para acabar os estudos, apesar da falta de dinheiro e de apoio dos pais, na alegria que sentira quando fora recebida na Ordem dos Advogados..."
“Todas elas têm segredos inconfessáveis. Escondem recordações horríveis de joelhos flectidos, de humilhações, de mentiras. Recordações de vozes que mal se ouvem do outro lado do fio, de chamadas que caem, de pessoas que morrem antes de elas as poderem rever, de dinheiro reclamado dia após dia para um filho doente, que já nem as reconhece e se esqueceu do som da voz delas...”
Nestes dois excertos, que colei acima, percebe-se desde logo a presença da crítica social contemporânea. O caso apresentado é o da família europeia de classe média com dois filhos pequenos, vivendo numa grande capital que recorre a uma ama proveniente da periferia para poder continuar a tratar das suas carreiras. A leitura que fazemos do quadro apresentado é naturalmente tolhido pelas nossas experiências e mundos, principalmente porque Slimani descreve não interpreta, as respostas ficam para cada leitor e por isso leia-se o que se segue enquanto tal.
Li “Canção Doce” imediatamente a seguir “Meio Sol Amarelo” de Chimamanda Ngozi Adichie, e não consegui nunca desligar a ama, Louise, do criado, Ugwu. A ligação entre ambos é tão umbilical que poderíamos pensar terem sido descritos pela mesma pessoa, mesmo pensando que que Slimani e Adichie são ambas africanas, não é por aí, porque na verdade o que aqui temos é a personagem cliché das classes altas europeias do século XIX e anteriores, que continuam a persistir em pleno século XXI. Ou seja, não é um problema de cliché narrativo, antes fosse, é um problema que existiu, que foi criticado e desconstruído ao longo do século XX, mas teima em persistir, tendo mesmo sido ampliado, passando da classe alta para a classe média. Vê-se aqui, que persiste a aparente necessidade das sociedades de situarem as pessoas em classes distintas, umas acima e outras abaixo, com umas no comando e as outras a servirem.
Aqui inevitavelmente tenho de evocar Michael Sandel, e o seu brilhante “A Tirania do Mérito”, em que cataloga um mundo feito de duas classes, os que Merecem, “porque se esforçaram” e os que Desmerecem, “porque não se esforçaram”. Duas classes que foram no passado definidas pela hereditariedade e passaram hoje definir-se por algo a chamamos "Mérito". Aqueles que estudaram, apanharam o elevador social, elevaram-se acima das classes baixas e são aqui Advogados e Produtores Musicais, entre outras coisas, vêem-se como estando acima dos comuns, os sem profissão definida, os que não estudaram, não apresentam oratória, não têm opinião para exprimir.
Mas o puzzle é mais complexo, e não se faz da mera persistência dos clichés herdados. Porque ao casal de classe média não sobra tempo para qualquer dos papéis aristocráticos dos seus antepassados. Porque para se elevar precisam de deixar de existir enquanto casal, enquanto pai e mãe, enquanto membros de uma comunidade que saboreia a vida, para apenas realizarem e se realizarem pelo trabalho. Apenas o investimento total e completo na profissão, carimbado com prémios, carros e casas ou credenciados pelos média, poderão conduzir ao reconhecimento e aceitação dos outros. Os outros que formam parte de uma comunidade hipotética, autêntica ilusão, aquela que toda esta classe média acredita estar à sua espera no final do trilho espinhoso, e que será tanto mais reconhecedora quanto mais árduo for o caminho. O mérito consegue-se pelo esforço, e a salvação consegue-se entrando para a comunidade de iguais, mas o lugar no altar parece depender da dor infligida por esse esforço.
"Canção Doce" pode ler-se como romance policial, ainda que quem venha apenas atrás disso possa sentir grande desconsolação com a entrega da autora, que recusa qualquer explicação causal e assim foge à natural recompensa do género literário. No entanto, se optarem por atender ao subtexto do que vai sendo apresentado, a recompensa será maior, ainda que sem respostas, mas como um contributo importante da autora para a necessária reflexão sobre o que andamos cá a fazer...
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