fevereiro 04, 2021

A luta de quem o quiser ler

Estou a ler “A Minha Luta”, paro e fecho o livro, levanto-me vou à cozinha e olho pela janela, vejo a oliveira ainda jovem a querer dar ares de si. Abro o armário tiro uma caneca branca alta e esguia, encho-a com água até meio, coloco-a no micro-ondas. Abro o frigorífico tiro o leite, apanho o vidro de café, pouso ambos na mesa. O micro-ondas toca, abro a porta tiro a caneca ouço o borbulhar da água que se evapora da fervura, pouso-a na mesa. Aparece a Cookie, abana o rabo, dou-lhe uma festa na cabeça enquanto abro o vidro de café. Ela não parece satisfeita, viro o café sobre a taça batendo ligeiramente com o dedo no fundo do vidro para que entorne a quantidade certa. Olho novamente para ela, ela olha para mim, quer dizer-me algo. Vou até à janela ela segue-me contente, abro-a e ela sai a correr, ladra para a árvore alta do vizinho de onde saem chilreios. Está frio, volto a fechar a janela bebo um gole de café, sinto o calor da taça nas mãos, volto ao escritório. Sento-me no sofá, duas almofadas de cada lado, olho para a capa de “A Minha Luta” volto a pegar-lhe leio mais algumas páginas volto a parar e a fechar. Olho pela janela e interrogo-me, "porque continuo a ler-te?"

Depois de ter lido metade e ver algumas entrevistas do autor, imagino Karl Ove Knausgård sentado à mesa da sua cozinha, num país frio, a bater nas teclas, debitando cenas ocorridas na sua vida, às quais vai acrescentando pequenos comentários. Por vezes deambula, disserta, introduz dados sobre a fisiologia ou biologia humanas, dá conta de alguns traços psicológicos, ou elabora sobre a cosmologia. O que nos conta da sua vida, a ele a e aos seus diz respeito. O que nos conta sobre ciência fica-se pela superfície e algumas ideias cliché.

Li múltiplas resenhas para tentar compreender a receção cheia de adoração e encontrei apenas dois pontos: a viciação na escrita; e a proximidade autobiográfica. Sobre o primeiro, compreendo, já que Knausgård usa a técnica inocente do “e depois, e depois”, a mesma que usei no primeiro parágrafo. Funciona como princípio fundamental do contar de histórias, o progresso contínuo de eventos, provocado pela ação dos verbos, que nos agarra pela curiosidade dessa mesma ação. É isto que nos apaixona nas histórias, o sucedâneo de eventos que se ligam aos anteriores e interligam aos posteriores. O nosso cérebro adora este emaranhado de ligações, e enquanto houver um “e depois”, quer sempre mais, porque precisa de completar a rede de nós daquilo que aconteceu ou está a acontecer, na ânsia de perceber se algo sai fora do que espera, ou das hipóteses que vai tecendo sobre o que vai acontecer a seguir. Já no campo da autobiografia, compreendo também, já que é algo que durante algum tempo me aproximou de alguma filosofia. Aquele sentimento de estar a ler algo que “fala para mim, porque senti igual, penso igual” o texto, a escrita torna-se magnética, como se o universo nos falasse e dissesse, “compreendo-te”, ou, “não estás sozinho”.

Quis ler por tudo isto, mas também porque a crítica internacional era unânime a louvar a genialidade da obra. Mas parei porque nada do que li me interessou. Pergunto, mas então porque leio obras literárias? A principal motivação está obviamente no espelho oferecido pela representação. Porque aprendemos sobre nós mesmos quanto mais soubermos sobre como vivem e pensam os outros como nós. Aprendemos sobre nós, quanto mais soubermos sobre como funciona o mundo que habitamos. Ler é um ato de profunda curiosidade, motivado pela vontade de compreender o mundo e o real que nos circunda, é uma luta pelo saciar do desejo intrínseco de continuar a aprender.

Compreendo o efeito hipnotizante de Knausgård, mas não funciona comigo. O que diz não me seduz, e a forma como o diz afasta-me. Não é uma questão de tradução, já que o tom da versão portuguesa é em tudo semelhante à versão inglesa. Falar de Proust, como tenho visto amiúde, serve apenas para me distanciar ainda mais. E é o próprio Knausgård a admitir que nada têm em comum, apesar de adorar a obra e a ter como referência, reconhece a distância. Também não é só identificação, porque nada poderia ser mais distante de mim do que o mundo de Proust. Início do século XX, alta sociedade, sem esposa ou esposo, sem filhos nem qualquer preocupação com a vida comum de quem tem de ganhar o seu sustento, numa Paris burguês-aristocrática. No entanto, o virtuosismo da escrita capaz de me fazer parar no final de cada parágrafo apenas para apreciar a sua beleza formal é algo muito raro. Ainda assim, isso seria bom, mas insuficiente, é mais, é também um virtuosismo na análise psicológica, dissecando as pessoas por dentro, como quem minera telas de emoções. 

Knausgård não faz nenhuma destas coisas. Os seus avanços e recuos carregam uma melancolia por vezes interessante, mas na maior parte das vezes indiferente, embora não para quem surge ali descrito, nomeadamente a família que categoriza os escritos como “literatura de Judas”, e que reagindo acabou apenas por alimentar a popularização da obra. Knausgård parece sentir arrependimento, diz ter sido “autista” ao “não ter pensado nas consequências”. Mas, num tempo de grande discussão sobre a privacidade nas redes sociais, em que grandes empresas vivem da invasão dessa privacidade, ter um escritor que se torna uma sensação mundial por invadir a privacidade de todos aqueles que com ele privaram, parece ser o novo normal. E o que dizer da elite da crítica internacional que desdenha o jornalismo de tabloide, as CMTV deste mundo, mas depois acorre à leitura do degredo humano e seu voyeurismo, salvaguardados pelo selo de "objeto de arte".


Nota posterior:

Ainda bem que dei por terminada esta leitura, pois após mais alguma pesquisa dei-me conta que o último volume, que a Rd'A  só publicou em dezembro passado, e apresenta mais de 1000 páginas, 1/3 do total da obra completa, traz uma dissertação de 400 páginas sobre Adolf Hitler enquanto jovem e sobre a escrita de "Mein Kampf". As minhas desculpas, mas não tenho qualquer interesse em ler 400 páginas de discussão sobre Hitler, antes ou depois do que quer que seja. Aliás, isto veio apenas por o dedo na ferida do título escolhido por Knausgård para a sua própria obra. Entretanto, quem o leu encontrou pérolas como:

“But at the time of its writing, its author, Adolf Hitler, was an ordinary man, he had not murdered anyone, had ordered no killings to be carried out, had stolen nothing and burned nothing to the ground.” na ed. inglesa, “The End: My Struggle Book 6”

Isto é mentira. Tenho isto perfeitamente claro, pois na leitura recente de "O Problema de Espinosa" de Irvin D. Yalom, descreve-se do período que conduziu Hitler à prisão em 1923, momento que ele aproveitou para iniciar a escrita de "Mein Kampf". Hitler foi preso por Alta-Traição, por ter liderado uma tentativa de Golpe de Estado em que morreram 16 pessoas do seu partido e 4 polícias. Isto não me parece algo feito por “pessoa comum”. Só encontro paralelo com esta cegueira de Knausgård nos Republicanos que continuam a defender que Trump ganhou as eleições em janeiro 2021.

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