janeiro 17, 2020

O arrepio que vem do Brasil

Há uns meses estive para fazer aqui um post sobre o filme "Menino 23", um documentário brasileiro de 2016 que dá conta da existência de células nazis no Brasil nos anos 1930. Acabei não o fazendo, porque o nazismo é por demais vezes citado para tudo justificar e por acreditar que é algo que não devemos banalizar. Contudo, nesta data, em que o Secretário da Cultura do Brasil, o maior responsável pela Cultura daquele país, lança um comunicado em vídeo, na rede, no qual ele próprio não só plagia textos de Joseph Goebbels, mas imita parâmetros estéticos de forma e conteúdo da propaganda Nazi, não devemos calar.
Repare-se na encenação do local — bandeira com fitas de honra, cruz patriarcal, fotografia do presidente e o resto limpo e austero — e depois na assertividade da linguagem corporal, facial e verbal, como toda a performance emula um tom de certeza absoluta, de Autoridade e Verdade, e ao mesmo tempo de ameaça, pronto a usar da força. Este secretário está longe dos tiques afetados de Goebbels (deem-lhe tempo e eles surgirão) mas a abordagem é a mesma, uma postura de afirmação de verdade única e prontidão para a confrontação.

Falar aqui da evocação da religião ou de Deus é totalmente secundário, muito mais grave é o uso da cruz patriarcal (para se colocar no topo hierarquia) juntamente com o reclamar de "lealdade" e "autossacríficio" para subjugar o povo, evidenciando quem domina, quem deve ser seguido. A partir daqui dizer-se então:
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.Roberto Alvim, secretário da cultura do Brasil, 16 janeiro 2020
É arrepiante o que diz e quer dizer, mas é muito mais arrepiante saber quem o disse antes e em que condições e a que conduziram essas frases:
"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.Joseph Goebbels
Diz o secretário num tweet (porque não responde à imprensa), que "Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém". Bem, posso dizer que isto é o costumam responder os alunos quando são apanhados a plagiar. O problema é que não é só a forma do texto, são as ideias completas, como vemos no resto do texto:
"A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte.
(...)
São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira."
Mas se restarem ainda dúvidas, peço-vos que atentem no facto do comunicado, apesar de provir de um membro do governo, vir com banda sonora musical, o que já por si configura a comunicação como propaganda política e não como comunicação de estado. Mas verificando que a música que corre por debaixo é uma ópera ("Lohengrin") de Richard Wagner, torna-se impossível não ver aqui a total orquestração estética da experiência propagandística nazi.

É claro que a direita brasileira pode evocar o facto dos anteriores governos, nomeadamente Lula, terem andado de mão-dada com ditadores de esquerda como Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas um erro não se conserta com outro erro. Menos ainda, quando se usa o pior que a História da Humanidade já conheceu, os causadores da II Guerra Mundial, o acontecimento mais mortífero de sempre perpetrado pela nossa espécie (Sapolsky, 2017).
Imagem do documentário "Menino 23" que podem ver completo, ainda que sem grande qualidade, no Youtube.

Fontes da notícia: 
O Globo, 16 e 17 janeiro 2020 
BBC Brasil, 17 janeiro 2020

janeiro 14, 2020

Envelhecendo com Noah

Há 14 anos expressava aqui o meu espanto com o primeiro vídeo de Noah, na altura feito com fotografias diárias de 6 anos. Hoje trago o vídeo em que Noah nos mostra a passagem de 20 anos em 8 minutos, criado a partir de 7263 fotografias tiradas, entre 11 de Janeiro 2000 e 11 de Janeiro 2020, uma por dia. Quando saiu o primeiro filme ainda não existia a palavra "selfie", quando aqui o partilhei, em 2007, contava com 5 milhões de visualizações, hoje conta com mais 20 milhões.
20 anos separam estas duas imagens

O filme, apesar de mais longo e envolvido numa nova música de Carly Comando — "Circadian" — continua tão hipnótico como o primeiro. Desta vez já não vemos Noah a tornar-se adulto, mas a a envelhecer, com a face a raiar e a pele a quebrar, recordando que também nós já disso nos apercebemos quando nos olhamos ao espelho.



Atualização: 15.1.2020 
Acabei de encontrar uma grande Entrevista com Noah Kalina, por Ryan Essmaker, de julho 2018 para a The Great Discontent, na qual ele fala sobre a sua carreira, o modo como começou e como sempre trabalhou em fotografia, sobre a relação arte e comércio e um conjunto de outros tópicos. Muito interessante.
"I think about it from time to time, and I don’t even know how you would start a career in photography now. You get yourself an Instagram account or something, I guess. But just generally, I’d say take a billion pictures. I mean, that’s what I did, and still do. It’s the only way you’re going to learn. And it’s a cliche, but: look at a lot of photography. Find what styles you like, and try to emulate them. You’ll become whatever you are as a photographer out of the mashup of photographers you admire."

““…people try to put you down, and to discourage you…But for some reason, I just didn’t care. I always believed there was going to be a way to make money doing photography.”

janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

janeiro 05, 2020

“The Leftovers” (2014)

Ao acabar a primeira temporada de “The Leftovers” estava estupefacto com a escrita. Puro malabarismo thriller, só conseguia pensar em "S.", "Annihilation" ou “Lost”, e em todas as séries que se baseiam em grandes eventos inexplicáveis — como “Flashforward” ou “Under the Dome” — e nos agarram, e nos prendem, mesmo sabendo nós que não existem respostas. Entretanto percebi que o cocriador de “The Leftovers” tinha sido também o cocriador de “Lost”, Damon Lindelof, e que a série vinha recomendada pelo próprio Stephen King.  Como é que se consegue criar assim? A partir de tão pouco parecer dizer tanto, como se o dissesse diretamente a cada um dos espetadores, premindo os seus botões emocionais, mantendo-os ali presos ao fio narrativo, sabendo estes que nada há ali? Ajuda imenso a partitura de Max Richter que parece tudo fazer levitar e conduzir para um desejar acreditar, para entrar no mundo da série para sentir, sentir, sentir...
A principal técnica de escrita aqui usada é o mistério, tal como JJ Abrams revelou na sua TED, nada mais importa ao leitor/espectador. O virtuosismo assenta no conseguir apresentar o mistério de forma credível e levá-lo até ao limite, obrigando o recetor a imaginar tudo aquilo que é o seu próprio mundo, dentro do espaço que o autor lhe oferece. É isso que torna a abordagem tão emocionalmente poderosa, a dotação de carga pessoal.

Por outro lado, quando colamos o mistério ao sentido da vida humana tudo ganha outra dimensão, e é isso que tão brilhantemente foi feito aqui. Não existem respostas, porque não podem existir, tudo é um jogo, tudo é um questionamento contínuo, sem fim, aconteçam as coisas mais bizarras, ad hoc, aleatórias que aconteçam é a vida a ser apenas a vida... poderia escrever sem fim, e andaria sempre a volta disto, porque daqui não conseguimos sair, e por isso o melhor será deixar-vos com um conjunto de palavras que acabo de ler na Esquire, a propósito da temporada 3, mas que dão conta do que senti no final desta primeira temporada:
“Part of our human experience on this planet is finding peace in an existence defined by the unknown. Although we may seek calm in religion, in science, we'll never know the answers to those existential questions which have driven humanity since they crawled out of caves. Yes, we've unlocked a deeper understanding of physics and chemistry and comfort in Christianity or Buddhism, but that greater question—"why?"—will always be there.
The Leftovers never set out to answer these bigger questions. It's a TV show—that would be ridiculous. Instead, The Leftovers was about the journey that we all experience in contemplating mortality, confusion, religion, loss, grief, and our own mind.” Matt Miller, in Esquire, (2017)

janeiro 01, 2020

Videojogos Narrativos 2010-2019

Depois de ter aqui listado os artefactos que mais contribuíram para o avanço do design de narrativa na última década — de que fazem parte videojogos, livros, novelas gráficas, filmes e fusões de media — agora trago a lista exclusiva de videojogos da década. Esta lista não pretende apresentar objetos pela sua inovação conceptual, mas antes dar conta das experiências de fundo narrativo mais marcantes desta década. O meio dos videojogos é imensamente diverso em termos de jogabilidade, contudo interessa-me aqui apenas dar conta dos videojogos com preocupações narrativas. O foco é então aquilo que se comunica e claro o modo como se socorre do meio para comunicar. Por isso a lista leva em conta também aspetos conceptuais, modos de fazer inovadores ou consistentes que sustentam essa comunicação. No fundo, foco-me aqui em videojogos com boas histórias, capazes de gerar experiências memoráveis plenas de significado, seguindo exatamente os mesmos moldes de uma seleção dos melhores livros ou filmes de ficção.
Estas são assim as obras que vamos continuar a referenciar no futuro para falar dos videojogos enquanto meio expressivo, não porque revolucionaram o meio, mas porque nos fizeram sentir e acima de tudo refletir. A escolha das primeiras obras desta lista dá conta disso ao mesmo tempo que demonstra a capacidade dramática alcançada, tanto em intensidade como em variedade de géneros ficcionais. A década foi imensamente rica.

Se a década anterior —Videojogos 2000—2009 — tinha dado conta do novo mundo aberto pelos videojogos à narrativa, esta segunda década consagrou as narrativas interativas nas suas múltiplas possibilidades conceptuais, a ponto de se tornarem meios de excelência de expressão da contemporaneidade. Ou seja, a evolução narrativa dos videojogos amadureceu, sendo estes hoje utilizados para dar voz a todos — dos modelos das grandes massas aos nichos e minorias. Aqui podemos encontrar não apenas grandes personagens nas suas sendas identitárias, como experienciar histórias na pele de personagens com que verdadeiramente nos identificamos — podendo escolher o nosso género ou cor da pele, assim como enamorar-se de um homem, uma mulher ou transgénero. Os videojogos narrativos deram finalmente uso ao potencial intrínseco da narrativa interativa — a personalização da experiência — e abriram horizontes até aqui muito pouco explorados pela ficção nos restantes media.

1. The Last of Us (análise)
2. Mass Effect 3 (análise)
3. The Witcher 3: Wild Hunt (análise)
4. Soma (análise)
5. The Walking Dead (análise)
6. Gone Home (análise)
7. Detroit: Become Human (análise)
8. What Remains of Edith Finch (análise)
9. Inside (análise)
10. Spec-Ops: The Line (análise)
11. Uncharted 4: A Thief's End (análise)
12. Red Dead Redemption 2 (análise)
13. Life is Strange (análise)
14. Kingdom Come: Deliverance (análise)
15. Heavy Rain (análise)
16. Papers, Please (análise)
17. Dishonored (análise)
18. The Last Guardian (análise)
19. Brothers: A Tale Of Two Sons (análise)
20. Firewatch (análise)
21. Horizon Zero Dawn (análise)
22. Neo Cab (análise)
23. Papo & Yo (análise)
24. My Child Lebensborn (análise)
25. 1979 Revolution: Black Friday (análise)
26. Middle-earth: Shadow of Mordor (análise)
27. Journey (análise)
28. Metro: Last Light (análise)
29. Celeste (análise)
30. That Dragon Cancer (análise)


Ficam por explorar vários videojogos de 2019, nomeadamente Disco Elysium, Outer WildsDeath Stranding. Veremos se algum destes acabará por tornar-se referência nos próximos anos.

dezembro 31, 2019

Design de Narrativa 2010 - 2019

Mais uma década passada, mais um conjunto de artefactos narrativos que contribuíram para o avanço da nossa percepção sobre os modos como contamos e registamos histórias. Muitos destes parecem recuperar ideias com trinta, quarenta e até centenas de anos, mas acabam sempre por trazer algo de novo e impulsionar a reflexão sobre os modos de fazer. Nos primeiros lugares coloquei artefactos que abrem para media completamente distintos — filme-jogo, novela gráfica, novela objeto, filme interativo, jogo-livro, simulação-jogo —, que como se percebe pela categorização não são claros, ou melhor, não se encaixam num único medium, pela simples razão de que quebram as convenções dos supostos media de origem.

1. Her Story [Filme-jogo] (análise)
2. Here [Novela gráfica] (análise)
3. S. [Novela objeto] (análise)
4. Possibilia [Filme Interativo] (análise)
5. Return of the Obra Dinn [Jogo-livro] (análise)
6. Bury Me, My Love [Simulação-jogo] (análise)
7. The Stanley Parable [RV] (análise)
8. Alma, A Tale of Violence [Webdoc] (análise)
9. Pearl [Animação 360º] (análise)
10. Florence [Novela Gráfica-jogo] (análise)
11. The Art of Pho [Motion comic] (análise)
12. Bandersnatch [Filme interativo] (análise)
13. Way to Go [RV] (análise)
14. The Random Adventures of Brandon Generator [Motion comic] (análise)
15. This War of Mine [Simulação-jogo] (Análise)
16. Pry [Livro multimédia] (Análise)
17. Thirty Flights of Loving [Videojogo experimental] (análise)
18. Lifeline [Simulação] (Análise)
19. CIA : Operation Ajax [Motion comic] (análise)
20. Thomas was Alone [Videojogo] (análise)

Nesta lista coloco apenas artefactos que surpreenderam no design da narrativa — estrutura e medium. Muitos dos objetos que o têm feito pertencem ao domínio dos videojogos, contudo aqui destaco apenas as inovações. Em termos de qualidade narrativa, tendo em conta história e jogabilidade, dedicarei uma lista própria aos videojogos narrativos brevemente.

Além destes, deixo ainda um conjunto de objetos ou abordagens a que vale pena ficar atento no futuro próximo, tais como os audiobooks de Choose-Your-Own-Adventure e os audiobooks da Marvel que poderão vir a garantir lugares privilegiados em sistemas como a Siri ou Alexa, ou ainda as séries para plataformas móveis de novelas gráficas interativas — Episode ou Choices — que apesar de estarem numa fase embrionária conseguiram já um público bastante alargado.

dezembro 30, 2019

"S.", multimodalidade em papel

Para uma novela estruturalista, uma crítica estruturalista: 1) Conceito e Premissa: 5/5; 2) Execução Técnica: 5/5; 3) Experiência Estética 2/5. Nota final de 4, nada mau, mas será melhor ler sobre cada um dos itens para ver se a nota quantitativa reflete o interesse qualitativo da obra.
S. (2013) de J.J. Abrams e Doug Dorst

1. Conceito e Premissa
Começando pelo conceito que é sem dúvida o melhor, não sendo revolucionário, nunca antes um livro foi assim distribuído, de forma massiva comercial — carregado de postais, fotografias, excertos de jornal, notas, guardanapos com mapas, etc. Mas talvez melhor que essa componente que salta à vista pela fisicalidade, seja o uso da marginália para contar a história principal. David Foster Wallace já tinha usado as notas de rodapé, mas como extensão narrativa. Neste caso, são notas à mão, nas margens, a marginália, sendo nelas que se centra o veio principal da história que se quer contar.

Assim S. é composto por 5 canais de informação, ainda que interligados, perfeitamente autónomos:

1. Ship of Theseus, o romance regular, inscrito nas páginas do livro em tipografia de máquina, escrito por um alegado autor, Straka, focado na personagem principal, S. Ou seja, o romance interno.
2. A marginália, notas nas margens do romance “Ship of Theseus”, escritas por Eric e Jen, que usam as margens do livro que ambos requisitam numa biblioteca para: comunicar, investigar sobre o livro em si, e flertar. No fundo, o romance externo.
4. Notas de rodapé, que estendem o prefácio do Tradutor e Editor de “Ship of Theseus”, nais quais este vai dando conta da sua pessoa, e da sua relação com Straka.
3. Os insertos físicos — notas, mapas, obituários, cartas com várias folhas, etc. — servem de extensão aos três fluxos anteriores.
5. Artefactos digitais — sítios web, vídeos e documentos (ver no final) — que se podem encontrar na internet e que servem também de extensão aos três primeiros fluxos.
Sendo nós apresentados de imediato a estes 5 caudais de informação, torna-se complicado decidir por onde começar a ler, por isso não faltam sites e manuais explicativos (ver no final). Do meu lado, e enquanto leitor habituado a ler fluxo de consciência e obras pós-modernas, aconselho que se siga sem método. Ou seja, consuma-se de tudo um pouco e avance-se aos poucos. A uma determinada altura algum dos canais agarra-nos mais e seguimos, para depois voltar atrás, e depois voltar novamente à frente... Estas obras procuram leituras em modo exploratório.

Tendo em conta as múltiplas camadas, a própria premissa acaba por se desmultiplicar em diferentes possibilidades: ou seja, podemos dizer que estamos perante a leitura de um livro em modo social, já que acompanhados na leitura pelos comentários e notas de outras pessoas que o leram antes; ou podemos dizer que estamos perante um romance sobre um casal que se encontra por meio de um livro, oferecendo-nos a possibilidade de assistir ao desenrolar de todo esse romance; ou podemos ainda dizer, que assistimos a um romance mistério, em que buscamos saber a identidade do seu autor, sendo ajudados pelos leitores das notas nas margens, e ainda pelo tradutor nas notas de rodapé, e ainda por todos os elementos físicos e digitais sobre aquele universo.


2. Execução Técnica
O livro que temos nas mãos foi sonhado e idealizado por JJ Abrams, o criador da famosa série Lost, e muitos outros trabalhaos de grande sucesso, de entre todos a sua maior proeza, em minha opinião, foi ter-se transformado no realizador e escritor das duas mais importantes séries de FC cinematográficas, Star Trek e Star Wars. Dizer isto, é como dizer que JJ Abrams tem carta branca para criar e produzir o que bem lhe apetecer. Embora considere que se tiverem visto Lost, compreenderão muito bem de que é feito S., sugiro ainda assim que vejam a Ted Talk realizada por Abrams, na qual ele explica a natureza da sua força criativa como residente na geração de universos-história de mistério.

Dito isto, preciso agora de dizer que o livro não é escrito por JJ Abrams. Abrams exerce aqui o cargo que tem vindo a privilegiar, o de produtor. Deste modo, consegue dar vida a muito mais projetos do que se tivesse de os concretizar efetivamente. Assim, o livro foi inteiramente escrito por Doug Dorst, um escritor americano, escolhido por Abrams para implementar a sua ideia. Além destes, houve ainda todo um trabalho direção de arte, de Paul Kepple, e um trabalho de design e ilustração de Ralph Geroni que garantem a execução final da ideia, tornando visual e palpável a ideia imaginada por Abrams e escrita por Dorst.


O resultado final é soberbo. S. é um livro objeto de excelência, aprecia-se cada momento com o livro, no manusear e na apreciação dos detalhes, dos relevos e texturas, das inscrições que oferecem marcas de autenticidade, tão próximas de o serem que dificilmente o podemos desmentir. É tudo tão perfeito, da qualidade do papel usado, tanto no guardanapo, como na fotografia e postais, a notas em papel de hotel, fotocópias, é toda uma viagem física. Por outro lado, o trabalho de Dorst na produção de mistério é perfeita, seguindo completamente o género de Abrams, instigando-nos a querer mais e mais, interligando tudo. Ou seja, tecnicamente é uma obra imensamente conseguida, totalmente coerente, capaz de garantir harmonia à multimodalidade de media usados.


3. Experiência estética
É pena que neste último ponto não se repitam os louvores, já que este seria talvez o mais importante. Porque a questão que se coloca sempre é se compensa tanta elaboração conceptual e técnica, se não se conseguiria o mesmo ou até mais, com menos. Ou ainda, de um outro ângulo, mais questionável, se toda esta parafernália multimodal não está apenas a servir de camuflagem a um trabalho menor.

Ora o problema que temos, não sendo conceptual nem técnico, é de ordem exclusivamente artística. Quer isto dizer que o problema está nas escolhas feitas em termos do conteúdo da história a contar. Reitero que o problema não é técnico, todos os elementos modais estão imensamente bem trabalhados. Dorst escreve bem e sabe urdir mistério garantindo o envolvimento do leitor. O problema decorre das histórias e personagens escolhidas, tudo muito fraco. O romance Ship of Theseus, apesar de emular uma obra de 1949, não pode usar isso como desculpa para se limitar a mero relato de aventura misteriosa. Os personagens são todos irrelevantes, estamos todo o tempo atrás do enredo que nos arrasta de local em local, com a cenoura do mistério. Se no início funciona, porque somos agarrados pela vontade de querer saber quem é S, à medida que se estende o mistério, e se faz resvalar o mesmo para várias outras camadas interpretativas, percebe-se que não existe interesse em dar respostas, e o nosso interesse começa a cair. Mas o pior surge quando passamos para a marginália, e percebemos que temos dois estudantes de literatura a discutir detalhes de um mero romance de aventuras que nada mais tem a oferecer além da superficialidade do enredo. Tal agrava-se quando os seus diálogos e conversas não apresentam qualquer preocupação literária e se focam apenas nas teorias da conspiração sobre crimes e identidades, tornando toda a discussão entre eles completamente irrelevante. Isto retira encanto aos artefactos físicos e digitais, porque deixa de nos interessar ir atrás, porque se os personagens não são críveis, então deixa de ser possível olhar para tudo aquilo como algo autêntico ou sequer relevante.

Para mim, o problema torna-se altamente evidente quando colocamos esta obra ao lado de Possession (1990) de A.S. Byatt. Uma obra na qual seguimos também dois académicos que procuram informações sobre um escritor esquecido e no qual nos afundamos, sem ter acesso a qualquer um dos magníficos recursos colocados nas mão de Abrams, mas temos o génio de A.S. Byatt que em texto corrido nos dá a sorver tantas ou mais camadas de informação, tudo num tomo único. No fundo, o que falta em S., é aquilo que falta em Hollywood, expressão pessoal, tudo é feito em nome do lucro, as histórias não se querem pessoais, nem vincadas de valores, mas antes universais, entendíveis pelo maior número de pessoas, capazes de gerar alguns momentos de diversão e que se fechem sem incomodar muito. S. é assim uma obra tecnicamente soberba que pouco ou nada tem para exprimir.


Páginas de apoio à leitura:
S. Files 22
Thoughts on S.

dezembro 26, 2019

Isolamento social animado em plasticina

“Facing It” (2018) é um filme de animação de estudante brilhante que além de apresentar uma história atual e impactante, recorre a um conjunto muito diversificado de técnicas de animação, misturando múltiplos media, para dar conta do sentir dos personagens. A curta é o resultado do projeto final do mestrado em Direção de Animação, National Film and Television School (UK), de Sam Gainsborough, depois de se ter licenciado em Screenwriting for Film and TV na Bournemouth University, em 2013. Ao longo do ano passado o filme foi galardoado com imensos prémios e nomeações.
Tecnicamente temos: pixilation, plasticina, chromakeying, motion tracking e rotoscoping. Os personagens são pessoas reais, filmadas com máscaras e marcadores faciais, em movimentos adaptáveis ao stop-motion do filme. Os grandes planos foram novamente filmados com fundo verde, para servir o rotoscoping e mistura com a plasticina. Os marcadores da face foram usados para a substituição das expressões, via motion tracking, com as animações criadas em plasticina.

É um trabalho audiovisual impressionante, pela mistura de técnicas que requerem competências muito distintas, e pelo resultado final imensamente conseguido em termos de coerência estética. Não só as técnicas foram fundidas sem deixar rasto, como a cinematografia e a cor trabalham em perfeita sintonia para fazer passar a história de Gainsborough. Vale a pena ver o making of, depois do filme, e ler a entrevista no Director's Notes.
No meio de tudo, gostei particularmente da técnica utilizada na modelação da plasticina, no modo como as dedadas em vez de serem limadas, para se tornarem invisíveis, são enfatizadas para oferecer textura e expressividade à superfície plástica. Em certos momentos, nomeadamente quando animados, o modo como Gainsborough trabalha os rastos das dedadas fazem lembrar as texturas produzidas pelas pinceladas de Van Gogh.


"Shaun always feels separate and isolated from the confident, happy world around him. Whilst waiting for his parents in a busy pub, Shaun struggles valiantly to join in with the admirably happy people in the crowd, but the more he tries, the more he goes awry. As everything in the pub goes from bad to worse, Shaun finds himself confronted by the painful memories that made him who he is. His feelings, memories and desires overwhelm him and by the end of the evening he is ready to explode…"

dezembro 25, 2019

o Holocausto por dentro

O meu imaginário do Holocausto era até agora estruturado a partir dos relatos de Primo LeviViktor Frankl e das imagens de Claude Lanzmann. Três obras não-ficcionais, dois relatos na primeira-pessoa da experiência vivida em Auschwitz, e uma visita, 40 anos depois, retratada por múltiplas vozes que por lá passaram e assistiram, dentro e fora, em primeira pessoa ao morticínio. "Son of Saul" (2015) é ficção, tal como "Come and See" (1985) de Klimov, mas diferentemente desse, não o parece.  São ambos obras de grande intensidade visceral, talvez das mais viscerais a que assisti, mas "Son of Saul" distingue-se pelo naturalismo utilizado que impregna a obra de um caráter quase documental, tornando tudo ainda mais intenso, se é que tal é possível... posso, contudo, dizer que vai além da camada emocional, as opções de câmara implementadas para dar a ver obriga a uma racionalização do espectador, o que torna a experiência particularmente perfurante.
Já me tinha interrogado sobre o como se "passaram as coisas", e o filme de Lanzmann é ainda mais instigador ao mostrar tudo muito depois, mas de modo estático obrigando-nos a imaginar. Aliás essa foi uma opção propositada de Lanzmann, o mesmo que depois de ver “A Lista de Schindler" disse:
"The Holocaust is above all unique in that it erects a ring of fire around itself, a boundary that you cannot cross, because it is impossible to convey a certain absolute horror; claiming to do so is to be guilty of the gravest transgression. Fiction is a transgression; I am deeply convinced that there is a prohibition on representation." Claude Lanzmann
Podemos assim dizer que optar pelo modo de Spielberg é como mostrar a dor humana à distância, a partir do conforto de um camarim. Mas Nemes quebra o tabu, atira o pudor janela fora e coloca-nos dentro da maior Fábrica de Morte alguma vez criada, colados à carne de um simples trabalhador judeu, obrigando-nos a ver tudo, ainda que pelas franjas do enquadramento. Claro que para tal foi preciso a performance brutal de Géza Röhrig.

O filme pode ser visto no FilmIn.