dezembro 28, 2018

Black Mirror Interativo

A Netflix juntou-se aos criadores de Black Mirror para nos oferecer, neste final de ano, "Bandersnatch" (2018), um episódio suportado em narrativa interativa. Não é a primeira experiência interativa da Netflix, mas é sem dúvida a sua maior aposta até agora no género. O facto de ser desenvolvida no âmbito da série "Black Mirror" não é um fator menor, já que o lado tecno-estranho da série se encaixa perfeitamente na ideia da aplicação de um sistema tecnológico a um formato clássico, o das séries de televisão. Mas Charlie Brooker, o criador da série e escritor deste episódio, não se limitou a explorar essa conexão, recuou no tempo nas suas memórias e encheu o episódio de referências intertextuais.


Em traços gerais, podemos dizer que temos três grandes temas — Anos 80, ZX Spectrum e Philip K. Dick (PKD) —, que por sua vez servem na geração de centenas de pequenas referências, que por um lado vão alimentando o nosso instinto lógico-cognitivo, e por outro nos vão massajando a nostalgia. No final dos 60-75 minutos, nem queremos acreditar que já estamos no final, queríamos mais, muito mais. Na verdade, uma hora é a duração normal do preâmbulo de um videojogo, e foi isso que senti no final de "Bandersnatch". Estava eu já ambientado e pronto a iniciar a experiência quando terminou. Valeram os replays finais em forma de epílogos, não fosse Brooker um enorme fã de videojogos.


Mais analiticamente. Talvez possamos considerar uma jogada suja, o facto de Brooker se ter socorrido de uma figura já mítica, PKD, já que funciona neste guião como verdadeiro Deus Ex-Machina. Apesar disso, Brooker coseu imensamente bem as pontas, a relação temática e as referências são muito bem balanceadas, capazes de criar uma dimensão própria para o filme, que por sua vez e com a ajuda da componente interativa, nos transporta para a mesma, e assim justifica plenamente a liberação do autor da causalidade do realismo. Em síntese, temos Brooker a brincar com as bases teóricas que suportam as narrativas interativas, não a mera quebra da 4ª parede, mas a quebra de sentido e lógica narrativa, pela colocação em causa do livre-arbítrio e do determinismo. E se isto se justifica por estarmos no formato de narrativa interativa, ainda mais justifica a entrada de PKD.
“It was a moment where we went, ‘Oh great that’s exciting, it’s a story that would only work in this way.’ Five minutes later we thought, ‘Oh shit, now we’ve got to do that, and it’s probably going to be complicated.’” Charlie Brooker, Wired, 28.11.2018
A abordagem escolhida, funcionado muito bem, tem o problema de ser irrepetível. Ou seja, não se pode dizer que o filme tenha aberto avenidas para mais episódios interativos. Por outro lado, temos uma obra que vale para além do mero género em que se encaixa, temos uma obra que não recordaremos pelas escolhas, mas porque nos impactou, porque nos fez pensar e sentir. Sobre tudo isto, temos ainda o facto de o filme estar disponível para mais de 130 milhões de espetadores no mundo, o que pode vir a contribuir para uma maior aceitação do género e assim potencialmente lançar a sua produção e consumo.

No campo mais técnico. Foi com enorme satisfação que descobri que Charlie Brooker escreveu o guião no Twine. Uma aplicação open-source criada para facilitar a criação de ficção interativa, que de tão simples tem a maior longevidade na área. Um dos maiores problemas da criação interativa tem sido desde sempre a falta de ferramentas que suportem a sua criação. Claro que o Twine serviu apenas para o guião, já que a Netflix foi obrigada a desenvolver toda uma nova aplicação de suporte à gestão dos trechos de filme que seguem totalmente o guião escrito por Brooker no Twine. Mas diga-se, funciona impecavelmente, como diz Brooker: “Seeing it work and work really smoothly has been quite odd. I found it almost emotional – as emotional as I get about anything, it was going to be something geeky”. Mais info por detrás da criação, leiam o texto da Wired.co.uk.


Para fechar, se ficaram com vontade de experimentar mais cinema interativo, posso recomendar vivamente "Late Shift" (2016) que podem ver na App Store ou na Playstation Store. Entretanto, se quiserem jogar o jogo que aparece no episódio, podem descarregar o mesmo do pseudo-site da TuckerSoft.


Leituras adicionais
How the Surprise New Interactive Black Mirror Came Together, Wired, 28.12.2018
The inside story of Bandersnatch, the weirdest Black Mirror tale yet, Wired.co.uk, 28.12.2018


Atualização 30.12.2018
Fluxograma completo de "Bandersnatch" (2018)

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