dezembro 21, 2018

Metanarrativas de uma nova sociedade, num videojogo

Que mais se pode pedir a um videojogo que nos faz refletir sobre aquilo que somos, sobre a sociedade em que nascemos e a que estamos a criar para deixar aos nossos filhos? “Florence” (2018) é um jogo extremamente simples, criado para telemóvel, mas munido de uma história que apesar de aparentemente também simples, é capaz de nos lançar nestas interrogações.


Sendo um pequeno jogo surpreende pela boa integração do design. Apesar de usar mecânicas bem conhecidas (ex. puzzles) estas são potenciadas pela história, ganham valor semântico, o que demonstra o cuidado tido na produção do jogo. Este mesmo cuidado é espelhado na arte, tanto no campo visual minimalista mas imensamente coerente, que se socorre da forma e cor conjugadas com a banda sonora (fazendo uso da sonoridade do violoncelo) para dirigir as nossas emoções. Nada disto surpreende se pensarmos que o autor por detrás do trabalho é Ken Wong, criador do brilhante "Monument Valley" (2014). Já agora, não esquecer que a editora de "Florence" é a Annapurna Pictures, que tem desenvolvido um trabalho notável no cinema, e no campo interativo conta com um portefólio bastante coerente. Claro que o ponto alto desta experiência é a narrativa, que sendo tão realista levou alguns críticos a rotularem o artefacto de jogo sério. Bem, só se quiserem rotular os romances de Hollywood também como sérios, ou então dizer que no mundo dos videojogos, o entretenimento só pode acontecer por via de tiros, magia e fantasia.

As várias mecânicas, apesar de lembrarem pequenos mini-jogos, são integradas como parte da história, ou seja, as ações conduzem a progressão narrativa.


*** Spoilers ***

Em “Florence” somos uma mulher citadina, vivendo só, à distância da mãe, num trabalho que não a entusiasma e um hobby que nos agrada. Conhecemos a nossa cara metade, e seguimos com ela todo o percurso narrativo da paixão, do entusiasmo ao seu desaparecimento. A mesmíssima história que já vimos e lemos milhares de vezes no cinema, na televisão, na literatura, no teatro. Mas aqui, e noutras representações mais recentes deste “girl meet boy”, o padrão alterou-se. Se no passado, a separação do casal era o clímax da tensão para intensificar o sabor da reconciliação, agora a separação é uma oportunidade de transformação e crescimento. Passámos de uma narrativa que nos parecia tão natural, o encontro entre dois seres e o lançamento da base para uma nova família, uma nova comunidade de suporte à sociedade, para o indivíduo, dono do seu destino a solo, pensando apenas sobre si e em si.

Ou seja, a ideia de que as metanarrativas desapareceram pela fragmentação das possibilidades acaba sendo uma falsa ideia, já que ela acontece na mesma, como se pode ver bem neste jogo. O encontro entre humanos é uma necessidade potenciada pelo sexo e pela paixão, mas temos vindo a racionalizar essa necessidade, não de um modo consciente, mas pela própria pressão a que estamos sujeitos nas nossas vidas, que acabam conduzindo-nos a um recolhimento sobre nós mesmos. Já não temos tempo para nada nem para ninguém, quanto mais para formar um casal que tanto exige, menos ainda pensar em descendência que nos roubaria tudo aquilo que sonhámos ser enquanto indivíduos. Queremos continuar a crescer, continuar a transformar-nos, continuar a ser crianças merecedoras de mimos, a ouvir o enaltecer das nossas competências individuais. Mais do que construir uma sociedade, estamos a construir bolsas de indivíduos que se sustentam em estruturas abstratas (leis, regulamentos, cidades e políticas) que vão mantendo as sociedades a funcionar...

Claro que estas reflexões são minhas, foram algo imediatas, mas por detrás destas existem outras não menos relevantes: como o empoderamento da mulher, ou a subversão da formatação pela sociedade, entre outras. E é por isso mesmo que o jogo é tão relevante, por abrir a discussão.


Nota: A constante troca entre o "nós" e "ela" faz parte da experiência que é despoletada pela linguagem própria dos videojogos que nos coloca no lugar de uma personagem, um avatar, levando-nos a assumir por vezes o lugar "dela", e outras o de nós mesmos.

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