dezembro 30, 2019

"S.", multimodalidade em papel

Para uma novela estruturalista, uma crítica estruturalista: 1) Conceito e Premissa: 5/5; 2) Execução Técnica: 5/5; 3) Experiência Estética 2/5. Nota final de 4, nada mau, mas será melhor ler sobre cada um dos itens para ver se a nota quantitativa reflete o interesse qualitativo da obra.
S. (2013) de J.J. Abrams e Doug Dorst

1. Conceito e Premissa
Começando pelo conceito que é sem dúvida o melhor, não sendo revolucionário, nunca antes um livro foi assim distribuído, de forma massiva comercial — carregado de postais, fotografias, excertos de jornal, notas, guardanapos com mapas, etc. Mas talvez melhor que essa componente que salta à vista pela fisicalidade, seja o uso da marginália para contar a história principal. David Foster Wallace já tinha usado as notas de rodapé, mas como extensão narrativa. Neste caso, são notas à mão, nas margens, a marginália, sendo nelas que se centra o veio principal da história que se quer contar.

Assim S. é composto por 5 canais de informação, ainda que interligados, perfeitamente autónomos:

1. Ship of Theseus, o romance regular, inscrito nas páginas do livro em tipografia de máquina, escrito por um alegado autor, Straka, focado na personagem principal, S. Ou seja, o romance interno.
2. A marginália, notas nas margens do romance “Ship of Theseus”, escritas por Eric e Jen, que usam as margens do livro que ambos requisitam numa biblioteca para: comunicar, investigar sobre o livro em si, e flertar. No fundo, o romance externo.
4. Notas de rodapé, que estendem o prefácio do Tradutor e Editor de “Ship of Theseus”, nais quais este vai dando conta da sua pessoa, e da sua relação com Straka.
3. Os insertos físicos — notas, mapas, obituários, cartas com várias folhas, etc. — servem de extensão aos três fluxos anteriores.
5. Artefactos digitais — sítios web, vídeos e documentos (ver no final) — que se podem encontrar na internet e que servem também de extensão aos três primeiros fluxos.
Sendo nós apresentados de imediato a estes 5 caudais de informação, torna-se complicado decidir por onde começar a ler, por isso não faltam sites e manuais explicativos (ver no final). Do meu lado, e enquanto leitor habituado a ler fluxo de consciência e obras pós-modernas, aconselho que se siga sem método. Ou seja, consuma-se de tudo um pouco e avance-se aos poucos. A uma determinada altura algum dos canais agarra-nos mais e seguimos, para depois voltar atrás, e depois voltar novamente à frente... Estas obras procuram leituras em modo exploratório.

Tendo em conta as múltiplas camadas, a própria premissa acaba por se desmultiplicar em diferentes possibilidades: ou seja, podemos dizer que estamos perante a leitura de um livro em modo social, já que acompanhados na leitura pelos comentários e notas de outras pessoas que o leram antes; ou podemos dizer que estamos perante um romance sobre um casal que se encontra por meio de um livro, oferecendo-nos a possibilidade de assistir ao desenrolar de todo esse romance; ou podemos ainda dizer, que assistimos a um romance mistério, em que buscamos saber a identidade do seu autor, sendo ajudados pelos leitores das notas nas margens, e ainda pelo tradutor nas notas de rodapé, e ainda por todos os elementos físicos e digitais sobre aquele universo.


2. Execução Técnica
O livro que temos nas mãos foi sonhado e idealizado por JJ Abrams, o criador da famosa série Lost, e muitos outros trabalhaos de grande sucesso, de entre todos a sua maior proeza, em minha opinião, foi ter-se transformado no realizador e escritor das duas mais importantes séries de FC cinematográficas, Star Trek e Star Wars. Dizer isto, é como dizer que JJ Abrams tem carta branca para criar e produzir o que bem lhe apetecer. Embora considere que se tiverem visto Lost, compreenderão muito bem de que é feito S., sugiro ainda assim que vejam a Ted Talk realizada por Abrams, na qual ele explica a natureza da sua força criativa como residente na geração de universos-história de mistério.

Dito isto, preciso agora de dizer que o livro não é escrito por JJ Abrams. Abrams exerce aqui o cargo que tem vindo a privilegiar, o de produtor. Deste modo, consegue dar vida a muito mais projetos do que se tivesse de os concretizar efetivamente. Assim, o livro foi inteiramente escrito por Doug Dorst, um escritor americano, escolhido por Abrams para implementar a sua ideia. Além destes, houve ainda todo um trabalho direção de arte, de Paul Kepple, e um trabalho de design e ilustração de Ralph Geroni que garantem a execução final da ideia, tornando visual e palpável a ideia imaginada por Abrams e escrita por Dorst.


O resultado final é soberbo. S. é um livro objeto de excelência, aprecia-se cada momento com o livro, no manusear e na apreciação dos detalhes, dos relevos e texturas, das inscrições que oferecem marcas de autenticidade, tão próximas de o serem que dificilmente o podemos desmentir. É tudo tão perfeito, da qualidade do papel usado, tanto no guardanapo, como na fotografia e postais, a notas em papel de hotel, fotocópias, é toda uma viagem física. Por outro lado, o trabalho de Dorst na produção de mistério é perfeita, seguindo completamente o género de Abrams, instigando-nos a querer mais e mais, interligando tudo. Ou seja, tecnicamente é uma obra imensamente conseguida, totalmente coerente, capaz de garantir harmonia à multimodalidade de media usados.


3. Experiência estética
É pena que neste último ponto não se repitam os louvores, já que este seria talvez o mais importante. Porque a questão que se coloca sempre é se compensa tanta elaboração conceptual e técnica, se não se conseguiria o mesmo ou até mais, com menos. Ou ainda, de um outro ângulo, mais questionável, se toda esta parafernália multimodal não está apenas a servir de camuflagem a um trabalho menor.

Ora o problema que temos, não sendo conceptual nem técnico, é de ordem exclusivamente artística. Quer isto dizer que o problema está nas escolhas feitas em termos do conteúdo da história a contar. Reitero que o problema não é técnico, todos os elementos modais estão imensamente bem trabalhados. Dorst escreve bem e sabe urdir mistério garantindo o envolvimento do leitor. O problema decorre das histórias e personagens escolhidas, tudo muito fraco. O romance Ship of Theseus, apesar de emular uma obra de 1949, não pode usar isso como desculpa para se limitar a mero relato de aventura misteriosa. Os personagens são todos irrelevantes, estamos todo o tempo atrás do enredo que nos arrasta de local em local, com a cenoura do mistério. Se no início funciona, porque somos agarrados pela vontade de querer saber quem é S, à medida que se estende o mistério, e se faz resvalar o mesmo para várias outras camadas interpretativas, percebe-se que não existe interesse em dar respostas, e o nosso interesse começa a cair. Mas o pior surge quando passamos para a marginália, e percebemos que temos dois estudantes de literatura a discutir detalhes de um mero romance de aventuras que nada mais tem a oferecer além da superficialidade do enredo. Tal agrava-se quando os seus diálogos e conversas não apresentam qualquer preocupação literária e se focam apenas nas teorias da conspiração sobre crimes e identidades, tornando toda a discussão entre eles completamente irrelevante. Isto retira encanto aos artefactos físicos e digitais, porque deixa de nos interessar ir atrás, porque se os personagens não são críveis, então deixa de ser possível olhar para tudo aquilo como algo autêntico ou sequer relevante.

Para mim, o problema torna-se altamente evidente quando colocamos esta obra ao lado de Possession (1990) de A.S. Byatt. Uma obra na qual seguimos também dois académicos que procuram informações sobre um escritor esquecido e no qual nos afundamos, sem ter acesso a qualquer um dos magníficos recursos colocados nas mão de Abrams, mas temos o génio de A.S. Byatt que em texto corrido nos dá a sorver tantas ou mais camadas de informação, tudo num tomo único. No fundo, o que falta em S., é aquilo que falta em Hollywood, expressão pessoal, tudo é feito em nome do lucro, as histórias não se querem pessoais, nem vincadas de valores, mas antes universais, entendíveis pelo maior número de pessoas, capazes de gerar alguns momentos de diversão e que se fechem sem incomodar muito. S. é assim uma obra tecnicamente soberba que pouco ou nada tem para exprimir.


Páginas de apoio à leitura:
S. Files 22
Thoughts on S.

Sem comentários:

Enviar um comentário