dezembro 22, 2016

“1979 Revolution”, um videojogo documental

Não é todos os anos que podemos ver um jogo sério/educativo alcançar o interesse das revistas da especialidade. Conhecemos imensamente bem os problemas que têm advindo da tentativa de juntar aspetos pedagógicos e videojogos, algo que já aconteceu antes com o cinema. Deste modo, se não fosse pelo interesse no jogo em si, valeria sempre a pena questionar o que tem “1979 Revolution” que faz com que funcione.





A resposta não é difícil, nem sequer complexa. “1979 Revolution” foi feito por uma equipa de pessoas com experiência na indústria clássica de videojogos (Navid Khonsari, John Malaska, etc.), ou seja, pessoas que sabem o que constitui um videojogo, e o que esperam os jogadores. Por outro lado, em termos educativos, em vez de professores a equipa possui documentaristas de cinema (Vassiliki Khonsari, Adam Neuhaus, etc.), ou seja, pessoas com um conhecimento profundo da arte de contar histórias. Juntando os dois, temos um objeto capaz de comunicar sem defraudar o meio, temos um artefacto que em vez de se preocupar com o ensinar, conta uma história. Diria neste sentido, que temos um videojogo documental.

Claro que se tudo isto funciona é também porque detrás de todo o desenvolvimento existe muita paixão. O criador Navid Khonsari viveu no Irão esta revolução. Pouco depois da mesma, e com 10 anos, o seu pai, médico em Teerão, resolveu emigrar para o Canada. Ou seja, muito do que podemos experienciar neste jogo surgiu a partir de memórias reais desses tempos, e do próprio criador. Por isso não surpreende ler na rede, muitos comentários de pessoas que sentem uma espécie de regresso ao passado ao jogar o jogo.

Em termos de valores de produção, outro dos problemas dos jogos não especificamente destinados ao grande domínio do entretenimento, "1979" não possui financiamento de milhões, e por isso nota-se um esforço de reflexão sobre o modo como ainda assim se poderia manter um nível de características capazes de tornar o jogo atrativo em 2016. Para tal, foram tomadas várias decisões técnicas que resultaram imensamente bem. Uma dessas é a animação toda criada com recurso a motion capture, o que evita a necessidade de equipas gigantescas de animação, e apesar de não ter a qualidade final de uma grande produção, funciona muitíssimo bem. Claro que funciona porque temos bons atores, boa direção desses mesmos atores, assim como bons diálogos e cinematografia.

Por outro lado, a jogabilidade baseada no modelo desenvolvido, ou melhor consagrado, pela Telltale Games para jogos como “The Walking Dead” (2012), reduz também imenso as necessidades de desenho e desenvolvimento de interação mais complexas no próprio ambiente de jogo. Com o cerne da jogabilidade a centrar-se nos diálogos e escolhas em texto, oferecendo-se além disso, quase como bónus, pequenas interações com eventos, pequenos mini-jogos e quicktime events, passear em espaços pequenos, ou tirar fotografias.

Sobre o jogo. Reza Shirazi, é o nosso personagem principal, tem apenas 18 anos, acabado de regressar ao Irão, depois de ter estado a estudar na Alemanha, vindo encontrar um país em ebulição. Filho de boas famílias, vai perceber que algo de estranho se passa na sociedade do Irão, desde logo a diferença tida entre os cidadãos de primeira e os de segunda. Começa a ouvir discursos de líderes no exílio, vai a manifestações, assiste a momentos chave da verdadeira revolução de 1979, e de repente damos por nós, enquanto jogadores, a fazer parte dessa revolução. Somos chamados pelo jogo a tomar em mãos o nosso destino, o de Reza, e para isso, a ter de refletir sobre que tipo de revolução queremos, ideologicamente onde nos posicionamos.

É exatamente neste ponto que o jogo vai brilhar, porque se usa toda a linguagem cinematográfica para contar a sua história, recorre à jogabilidade para nos colocar no local. Em vários momentos somos chamados a agir: devemos lutar ou pacificar uma discussão que envolve comunistas contra religiosos; devemos atirar pedras à polícia do governo ou seguir uma abordagem pacifista; devemos defender um irmão entretanto inscrito na polícia secreta, ou deixá-lo cair com o governo, etc. Ou seja, “1979” não conta apenas a história do que aconteceu no Irão, coloca-nos lá, e conduz-nos a participar nos seus eventos, torna-nos de uma certa forma responsáveis pelo que acontece(u). Ao contrário do cinema, não podemos apenas testemunhar a revolução, temos de a sentir por dentro, e assim a compreensão do sucedido deixa de ser meramente informacional passando para um plano mais experiencial.

Tecnicamente, esta experienciação tem falhas, nomeadamente de balanceamento e ritmo, e teria ganho com mais investimento em UX. Por outro lado, o jogo é bastante curto, são apenas 2 horas, o que não dá muito tempo para construir toda a imersão, mais ainda para uma cultura tão distante e complexa. Ainda assim, e como disse, estamos perante um jogo com financiamento reduzido o que torna complicado atingir a excelência a todos os níveis.

Em termos da experiência geral, adorei o confronto sentido com uma cultura muito pouco difundida no ocidente. Permite-nos conhecer um pouco mais de um país tão rico culturalmente, e perceber o quão próximos todos estamos, o quanto as ideologias se aproximam independentemente do ponto geográfico e até mesmo das religiões. Por outro lado, permite ainda compreender como já em 1979 os problemas face à influencia dos EUA se registavam. Contudo, é com muita pena que vejo o atual governo do Irão a banir um jogo que acredito servir imenso no dar a conhecer do país.

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