dezembro 17, 2016

“The Last Guardian” (2016)

“ICO” saiu em 2001, “Shadow of the Colossus” (SOTC) saiu em 2005, e este ano chegou a vez de “The Last Guardian” (TLG). São os três únicos videojogos criados por Fumito Ueda, três grandes visões oníricas e peculiares que dão acesso a um género próprio que opto por apelidar aqui de humanismo fantástico. Dito isto, fica claro que não podemos cingir a interpretação de TLG a si próprio, temos de olhar ao contexto do autor e suas criações prévias. Não sabemos se Ueda nos dará mais algum jogo mas esta é, desde já, uma das trilogias mais relevantes na definição da arte dos videojogos.



Podemos começar pelo que uniu ICO (analisado em 2004) e SOTC (analisado em 2013) dizendo que é o mesmo que os une a TLG, e que assenta em dois grandes pilares: a capacidade empática; e o mundo história. Nos três videojogos, os mundos são enigmáticos, nos seus sentidos mais herméticos e obscuros, ao mesmo tempo que os seus personagens são profundamente humanos, nas suas expressões mais sensíveis e de compreensão do outro.

Por outro lado, em todos os três jogos, a história é mais tema e menos trama. Ou seja, surge como pano de fundo que alimenta um enredo mínimo, estimulando o interesse e a envolvência dos jogadores pela performance e interação dos seus personagens. Temos aquilo que na academia definimos como, narrativas orientadas por personagens (character-driven narrative). Assim, não é saber quem criou aquele mundo e aqueles seres (problema ou conflito) que nos agarra, mas é antes saber como vai terminar a relação entre aqueles seres que nos move (personagens).

"ICO" (2001)

"Shadow of the Colossus" (2005)

"The Last Guardian" (2016)

Em 2001 tivemos o Rapaz e a Rapariga, em 2006 o Jovem e o Cavalo, e agora de novo o Rapaz, mas junto com uma criatura do fantástico (fusão gigante de cão, gato e pássaro). Podemos tentar explicar o que une estas três relações, e se nos esforçarmos serão múltiplas as interpretações que poderemos desenvolver, até mesmo, criar as devidas progressões e evoluções entre os três volumes. Contudo o seu criador não o fez com esse intuito, de modo que fazê-lo será estar apenas a dar azo as nossas próprias fantasias. Para mim, é suficiente reconhecer que os universos dos três videojogos se cruzam, formam um todo coerente, profundo e impactante do ponto de vista sócio-político, emocional e claro, estético. Ainda assim, arrisco a deixar a minha leitura: temos a fragilidade humana que dita a sua condição colaborativa e cooperativa; temos o instinto de sobrevivência emocional que nos empurra para o outro, para a compreensão desse outro, e obriga ao colaborativo e cooperativo; e temos, todo um mundo exterior que nos coage pela sua grandeza, pela sua estranheza e seu segredo, que nos encosta à parede e nos obriga a gritar pelo outro, a recorrer ao colaborativo e cooperativo. E assim temos um humanismo fantástico.

Não admira que durante quase uma década “ICO” tenha surgido invariavelmente citado como o videojogo mais emocional, em termos de emoções introspetivas — empatia e melancolia — já que no que toca a emoções expansivas — tensão e euforia — sempre estiveram presentes desde o primeiro videojogo. O que as obras de Ueda fazem é falar ao nosso ser, questionar a nossa condição humana, porque fazemos o que fazemos, todos os dias que acordamos e regressamos do estado de não-consciência! É isto que fazem todas as grandes obras da literatura, do cinema ou do teatro, e é por isso que os trabalhos de Ueda não se encerram sob a mera definição de entretenimento, de produto de design gerador de “fun”, são algo diferente, são obras de arte.

Design de jogo - a capacidade empática
No campo do design de jogo as obras de Ueda trabalham todas em redor dos NPC (personagens não jogáveis). Se em ICO tínhamos Yorda e em SOTC tínhamos Agro junto com os Colossus, aqui temos Trico. Em todos, temos a IA a dar vida aos NPC para que eles se tornem credíveis, mas acima de tudo para que eles proporcionem tudo aquilo que de jogo se trata. Se é da interação entre personagens que os jogos de Ueda vivem, é natural que os seus personagens tenham de ser não apenas bons, mas absolutamente perfeitos. Sim, não esqueçamos que é de arte que falamos, de uma representação do real, na qual os criadores podem recortar tudo aquilo que menos lhes interessa, mesmo que se trate de um jogo com ação passada em tempo real. Claro que para isso, foi preciso dotar Trico de um dos mais ricos repertórios de linguagem não-verbal que podemos encontrar no mundo dos videojogos.




Todos os seus movimentos foram criados, avaliados, e refinados até ao mais ínfimo detalhe para garantir um manancial comunicativo inestimável. Vai muito além de Yorda que na altura nos tinha tanto surpreendido. Diria que temos uma espécie de Yorda junto com um dos Colossus, mas imensamente mais vivo, mais, podemos dizer, humano. Mas se tudo isto é fascinante, mais ainda é quando percebemos que o propósito de tudo isso não é Trico, mas sim o nosso próprio personagem controlável, o Rapaz, atente-se nas palavras de Ueda que explicam:
“The main character is controlled by the player, so the main character is you, but because every single gamer is different, it’s very hard to give the player an exact definition of the protagonist: it’s up to you who the main character is going to be. As a developer, in order to form such a character you need assistance from that character’s surroundings – that’s where the role of the NPC, or opposite character in the case of our games, comes in. The secondary character helps shape the main character. That’s how we make our games.” Fumito Ueda 
Ou seja, Trico, tal como tinha acontecido com Yorda e Agro, comunicam em espelho aquilo que o protagonista sente, fazendo o jogador sentir-se como sente o protagonista. E é assim que surge toda a força do elemento que destaquei no início deste texto, a capacidade empática. E é exatamente aqui que TLG vai muito além dos seus antecessores, já que Trico é uma força da natureza, é verdadeiramente aquilo que o meu filho não parou de lhe chamar ao longo de todo o jogo, “o teu amigo”. E é por isso que me tenho rido sempre que leio pessoas a dizer que o TLG tem muitos problemas e bugs, nomeadamente no controlo de Trico. O que esses jogadores não perceberam é que Trico é um animal, um ser-vivo e não um robô, por isso nem sempre faz o que se lhe manda e isso é absolutamente brilhante.

Mundo história - Ambiente, Espaço e Arquitetura
Tudo o que vivemos com Trico, vivemos num mundo dotado de uma arquitectura absolutamente particular, que cria um ambiente distinto e imensamente atmosférico. Ou seja, um cenário de fantasia, fruto de uma grande mistura de variáveis próprias ao mundo de Ueda. Algo que é particularmente interessante, academicamente, já que Ueda tem dito em entrevistas, que estes mundos brotam apenas da sua imaginação, uma vez que ele dedica pouco tempo a procurar referências ou a viajar para conhecer locais. Inclusive, chegou mesmo a dizer nunca ter visitado um castelo, o que impressiona tendo em conta as estruturas presentes nos seus três jogos.

No entanto, e apesar de Ueda dizer tal, isso não corresponde completamente à verdade. Ao longo das várias entrevistas, e um pouco tirado a ferros, foi deixando cair algumas referências que entretanto Gareth Martin coligiu para a Eurogamer. Assim, e seguindo as pistas destacadas por Martin — três artistas, De ChiricoTrignacPiranesi — podemos compreender como pôde a imaginação de Ueda germinar mundos tão estranhos, impenetráveis, misteriosos, e acromáticos. A nossa imaginação trabalha por meio da nossa criatividade que só funciona quando plena de experiências, ideias e mundos. Do vazio só brota vazio.

"The Nostalgia of the Infinite", 1913, Giorgio de Chirico

"Le vieux pont", 1980, Gerard Trignac 

"La tour du pendu", 1981, Gerard Trignac

"The Man on the Rack", 1761, Giovanni Battista Piranesi


Para fechar, ainda que exista tanto e tanto para dizer sobre TLG, podemos numa primeira impressão sentir uma certa limitação na obra, nomeadamente na sua capacidade para ultrapassar as obras anteriores do autor. Inicialmente podemos sentir que TLG é mais uma atualização técnica que se socorre de um mesmo conjunto de mecânicas, valores e ideias, mas isto é algo que rapidamente se desvanece, porque a obra e o jogo deixam de o ser, dando muito rapidamente lugar ao sentir para com Trico. O mundo torna-se natural aos nossos olhos e à nossa ação, passando nós a estarmos ali, participantes de uma realidade fantástica, focados apenas naqueles personagens, nos seus desejos, motivações e bem-estar. TLG desenvolve uma experiência única, e estando em linha com as obras anteriores não deixa de ser completamente autónoma.

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