janeiro 03, 2019

10 posts de 2018

Em 2018 este blog fez 15 anos. Ainda me custa encarar tanto ano, é muito tempo, mas passa, e nunca pára, e cada vez mais rápido. Do que ficou deste ano, pouco mais de 100 posts, e pouco mais de 100 mil visitas, e apesar de contar para mim mais os textos que aqui vou deixando, não quero fechar o ano sem deixar aqueles que recolheram mais entusiasmo junto de quem lê. Por isso aqui ficam os 10 textos mais lidos, por ordem descendente.

"O Empíreo" (1861) por Gustave Doré a partir da "Divina Comédia" (1320) de Dante

1 - Cowboys Youtubers, 1.2018
2 - Fábula da Academia do século XXI, 7, 2018
3 - Humor com poder transformador, 7.2018
4 - Design de Comportamento, 10.2018
5 - Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia, 9.2018
6 - A Cultura de Imitação Chinesa, 2.2018
7 - Primeiro Eça, depois os Maias, 7.2018
8 - La Casa de Papel (2017), 4.2018
9 - Divina Comédia (1320), 2.2018
10 - Monumentos feitos de Livros, 7.2018

janeiro 02, 2019

os dez melhores lidos em 2018

Aproveito para deixar aqui uma pequena lista de livros, independentemente de serem ficção ou não-ficção, assim como do ano em que foram escritos ou publicados, representando apenas e só as minhas melhores experiências de leitura ao longo do ano 2018. São 10 livros que recomendaria a qualquer pessoa, não são os únicos a que dei 5 estrelas este ano, mas são os 10 que recomendaria como leitura fundamental ,pela sua capacidade de nos transformar. Se quiserem ver a lista completa, fica a página do GoodReads.


"A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer", (1952), Stig Dagerman
"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" (2000), Michael Chabon
"Demónios" (1872), Fiódor Dostoiévski
"Educated" (2018), Tara Westover
"Filhos da Meia-Noite, Os" (1981), Salman Rushdie
"Ilusões Perdidas" (1837), Honoré de Balzac
"Imaginação e Criatividade na Infância" (1930), Lev Vygotsky,
"Manual dos Inquisidores, O" (1996), António Lobo Antunes
"Neve" (2002), Orhan Pamuk
"Order of Time, The", (2017), Carlo Rovelli

Os livros são apresentados por ordem alfabética. Podem ler as resenhas de cada um clicando nos mesmos.

dezembro 31, 2018

Medeia (431 a.c.)

Uma viagem de 2500 anos para encontrar um problema humano que continua igual a si mesmo, capaz ainda hoje das mesmas consequências trágicas. Antes de se iniciar o relato de Eurípides, Medeia terá traído o pai e morto o irmão para ajudar Jasão e os Argonautas, abandonando depois o seu país com Jasão, de quem viria a ter dois filhos. O relato começa com Medeia já na Grécia, um país estranho para ela, descobrindo que Jason decidiu abandoná-la para casar com a filha de Creonte, rei de Corinto. O que sucede depois só pode ser tragédia, mas porquê?

"Medeia e a Urna" (1873) de Anselm Feuerbach

De tanto que se poderia destacar nesta pequena peça de Eurípedes opto por me focar nesta questão porque ao longo dos anos me tenho debruçado invariavelmente sobre ela, dada a intensa emocionalidade que tende a gerar, sendo grandemente responsável por muito daquilo que conhecemos hoje como violência doméstica. Aliás, não é por acaso que nos meus 30 livros preferidos tenho “Os Dias do Abandono” (2002) de Elena Ferrante, o livro que me veio de imediato à mente assim que comecei a “ouvir a voz” de Medeia.

A meio da peça Jasão apresenta as suas razões para casar com a filha do rei, que como diz o Coro e Medeia, não passam de bem falar, sem substrato. Repare-se como é este o cerne: a razão para o abandono. Porque o casamento não é uma cerimónia, é um contrato, um contrato que requer uma razão para ser quebrado. O problema é que a razão precisa de satisfazer ambas as partes no mesmo momento, e isso só muito raramente acontece. Assim, quando não existe o encontro e a sincronia entre as partes para aceitar o fim, abandonamos o reino da razão e da lógica, e entramos pelo reino exclusivo da emoção adentro. Aí começam a surgir os grandes substantivos — traição, deslealdade, engano, impostura — que levam ao pior do humano: a vingança, a punição, a destruição.

dezembro 30, 2018

Histórias de engodo

A pouco mais de meio do livro “Bird Box” (2014) desisti. Parecia pouco provável que me pudesse oferecer mais do que o pouco que tinha retirado até ali. Decidi então ver o filme para poder mais rapidamente fechar o capítulo da experiência. Se o livro tinha dado pouco, o filme nada deu. Admito que o problema seja meu, acreditei que era um thriller e afinal era apenas uma história de terror. Quando assim é, interessa apenas o medo e o susto, a coerência causal é completamente secundária.


Aproximei-me de “Bird Box” por causa de um cartaz da Netflix que apresentava uma mãe de olhos vendados a abraçar os filhos (IMDB). Procurei saber mais, e encontrei uma espécie de grande comunidade seguidora do livro, com as resenhas mais elogiosas e muitas estrelas. Por outro lado, o filme contava com Sandra Bullock e John Malcovich, e realização de Susanne Bier, não podia ser um simples filme de terror! Assumi-o como thriller pós-apocalíptico, recordei “The Road” (2006) de Cormac McCarthy e “Ensaio sobre a Cegueira” (1995) do Saramago, por isso decidi ler o livro primeiro. Mas rapidamente percebi que tinha pedido demais, não só pela escrita, mas por toda a manipulação emocional — nomeadamente os suicídios provocados pelo “evento”. Ao fim de poucas páginas comecei a inclinar-me para “The Happening” (2008) de M. Night Shyamalan, mas até aí me perdeu, nada parecia ter sustentação ou plausibilidade. Existe aqui savoir-faire, mas está posto ao serviço da mera inovação, como quem está a criar um novo produto: pega-se nas histórias pós-apocalípticas, tão em voga, introduz-se-lhe uma variação no gerador de medo, e está feito.


Entretanto vi, por estes dias e por mero acaso, “The Quiet Place” (2018) de John Krasinski (IMDB), com uma premissa exatamente igual, variando apenas o sentido (visão / audição). Se em “Bird Box” a fórmula pós-apocalíptica é pseudo-inovada pelo facto das pessoas terem de se vendar, já que o simples olhar para as “criaturas” (nunca sabemos se são mesmo criaturas) as transforma e faz com que se suicidem. Em “The Quiet Place”, a emissão de qualquer ruído atrai criaturas que circulam a grande velocidade e destroem tudo o que crie som. Nas duas histórias, nada se sustenta. Criar duas crianças durante 5 anos, num mundo destruído, com recurso a enlatados roubados de casas distantes, a que se acede às apalpadelas! Ou andar de carro, realizar plantações inteiras de milho, e dar a luz, sem emitir qualquer som!

Ambas as premissas, “Bird Box” e “The Quiet Place”, faziam sentido num qualquer livro de pequenos contos de terror. São trabalhos de pura manipulação da atenção dos leitores/espectadores, não há nada ali, mas quem escreve sabe puxar os cordelinhos da nossa cognição e emoção para nos manter agarrados. Se escrever um livro inteiro era desperdício do talento de qualquer escritor, produzir filmes que custam milhões com base nisto é um autêntico hino à ociosidade da nossa espécie.

dezembro 29, 2018

Videojogos do Ano 2018

Este ano não me foi possível escolher um Jogo do Ano, tive de me conformar com dois. São ambos grandes videojogos, muito próximos no género, imensamente relevantes para o avanço e definição da linguagem dos videojogos, mas muito diferentes em termos de produção. "Red Dead Redemption 2" (RDR2) é um marco técnico, fazendo uso de todos os recursos imagináveis para nos dar uma das maiores conquistas desta geração de consolas, que servirá de referência durante muitos anos, não apenas para jogadores, mas também para criadores. "Kingdom Come: Deliverance" (KC:D), é a demonstração de que aquilo que a Rockstar fez com 2000 pessoas, e centenas de milhões de dólares (entre 600 a 800 milhões de dólares), pode ser feito com uma produção 20 vezes menor, com "apenas" 100 pessoas e algumas dezenas de milhões (cerca de 35 milhões de dólares). Podemos dizer que RDR2 é um colar de diamantes e KC:D um colar de prata, mas ambos foram talhados com imenso cuidado e detalhe. Ambos conseguiram rentabilizar o aparelho expressivo dos videojogos em grande extensão, construindo duas obras que põem um ponto final na afirmação da importância dos jogos enquanto objetos culturais. São dois artefactos que recorrem ao melhor da literatura e ao melhor do cinema para mostrar como os videojogos se diferenciaram e afirmaram a sua própria linguagem.

Ex aequo 2018: "Kingdom Come: Deliverance" e "Red Dead Redemption 2"

KC:D e RDR2 oferecem dois mundos-história capazes de alargar o nosso conhecimento pela enorme profundidade com que ambas as épocas — europa central medieval e conquista do oeste americano — são apresentadas. Estes mundos-jogo são feitos de teias de histórias, apresentando uma imensidade de factos e conhecimento, mas garantindo experiências de enorme prazer, tanto pelo lado da fruição, como pelo lado da criação, aquele em que os jogos mais se diferenciam da literatura e cinema. Pede-se aos jogadores que usem e experimentem com o conhecimento oferecido e dessa forma construam memórias profusas dos mundos. Ambos são autênticas enciclopédias de conhecimento à espera do jogador, propostos como parques de recreio assentes em séries infindáveis de ações e atividades, capazes de envolver e motivar, pela representação e enação, os utilizadores na construção de novos modelos mentais sobre a realidade.

1 - Kingdom Come: Deliverance, Rep. Checa, Daniel Vávra
1 - Red Dead Redemption 2, EUA, Dan Houser
3 - Gris, Espanha, Conrad Roset
4 - Florence, Austrália, Ken Wong
5 - Return of the Obra Dinn, EUA, Lucas Pope
6 - My Child Lebensborn, Noruega, Catherina Bøhler
7 - Celeste, Canada, Matt Thorson
8 - Detroit, França, David Cage
9 - God of War, EUA, Cory Barlog
10 - A Way Out, Suécia, Josef Fares

De fora fica "Ni No Kuni II" que comecei mas não tendo encontrado nada de novo parei, talvez volte a ele lá para frente, mas só depois de passar por "Assassin's Creed Odyssey", "Forgotten Anne", "Vampyr", "11-11 Memories Retold". Este foi também o primeiro ano em que senti a falta de uma Xbox, apesar de isto se ter juntado à loucura que foi este final de ano em lançamentos. Assim ficaram de fora jogos como: "Frostpunk", "Below" e "Ashen". No meio de tudo isto, existe sempre espaço para decepções, a deste ano foi "Monster Hunter World", embora admita que me tenha deixado levar por expectativas geradas pela componente de marketing.

dezembro 28, 2018

Black Mirror Interativo

A Netflix juntou-se aos criadores de Black Mirror para nos oferecer, neste final de ano, "Bandersnatch" (2018), um episódio suportado em narrativa interativa. Não é a primeira experiência interativa da Netflix, mas é sem dúvida a sua maior aposta até agora no género. O facto de ser desenvolvida no âmbito da série "Black Mirror" não é um fator menor, já que o lado tecno-estranho da série se encaixa perfeitamente na ideia da aplicação de um sistema tecnológico a um formato clássico, o das séries de televisão. Mas Charlie Brooker, o criador da série e escritor deste episódio, não se limitou a explorar essa conexão, recuou no tempo nas suas memórias e encheu o episódio de referências intertextuais.


Em traços gerais, podemos dizer que temos três grandes temas — Anos 80, ZX Spectrum e Philip K. Dick (PKD) —, que por sua vez servem na geração de centenas de pequenas referências, que por um lado vão alimentando o nosso instinto lógico-cognitivo, e por outro nos vão massajando a nostalgia. No final dos 60-75 minutos, nem queremos acreditar que já estamos no final, queríamos mais, muito mais. Na verdade, uma hora é a duração normal do preâmbulo de um videojogo, e foi isso que senti no final de "Bandersnatch". Estava eu já ambientado e pronto a iniciar a experiência quando terminou. Valeram os replays finais em forma de epílogos, não fosse Brooker um enorme fã de videojogos.


Mais analiticamente. Talvez possamos considerar uma jogada suja, o facto de Brooker se ter socorrido de uma figura já mítica, PKD, já que funciona neste guião como verdadeiro Deus Ex-Machina. Apesar disso, Brooker coseu imensamente bem as pontas, a relação temática e as referências são muito bem balanceadas, capazes de criar uma dimensão própria para o filme, que por sua vez e com a ajuda da componente interativa, nos transporta para a mesma, e assim justifica plenamente a liberação do autor da causalidade do realismo. Em síntese, temos Brooker a brincar com as bases teóricas que suportam as narrativas interativas, não a mera quebra da 4ª parede, mas a quebra de sentido e lógica narrativa, pela colocação em causa do livre-arbítrio e do determinismo. E se isto se justifica por estarmos no formato de narrativa interativa, ainda mais justifica a entrada de PKD.
“It was a moment where we went, ‘Oh great that’s exciting, it’s a story that would only work in this way.’ Five minutes later we thought, ‘Oh shit, now we’ve got to do that, and it’s probably going to be complicated.’” Charlie Brooker, Wired, 28.11.2018
A abordagem escolhida, funcionado muito bem, tem o problema de ser irrepetível. Ou seja, não se pode dizer que o filme tenha aberto avenidas para mais episódios interativos. Por outro lado, temos uma obra que vale para além do mero género em que se encaixa, temos uma obra que não recordaremos pelas escolhas, mas porque nos impactou, porque nos fez pensar e sentir. Sobre tudo isto, temos ainda o facto de o filme estar disponível para mais de 130 milhões de espetadores no mundo, o que pode vir a contribuir para uma maior aceitação do género e assim potencialmente lançar a sua produção e consumo.

No campo mais técnico. Foi com enorme satisfação que descobri que Charlie Brooker escreveu o guião no Twine. Uma aplicação open-source criada para facilitar a criação de ficção interativa, que de tão simples tem a maior longevidade na área. Um dos maiores problemas da criação interativa tem sido desde sempre a falta de ferramentas que suportem a sua criação. Claro que o Twine serviu apenas para o guião, já que a Netflix foi obrigada a desenvolver toda uma nova aplicação de suporte à gestão dos trechos de filme que seguem totalmente o guião escrito por Brooker no Twine. Mas diga-se, funciona impecavelmente, como diz Brooker: “Seeing it work and work really smoothly has been quite odd. I found it almost emotional – as emotional as I get about anything, it was going to be something geeky”. Mais info por detrás da criação, leiam o texto da Wired.co.uk.


Para fechar, se ficaram com vontade de experimentar mais cinema interativo, posso recomendar vivamente "Late Shift" (2016) que podem ver na App Store ou na Playstation Store. Entretanto, se quiserem jogar o jogo que aparece no episódio, podem descarregar o mesmo do pseudo-site da TuckerSoft.


Leituras adicionais
How the Surprise New Interactive Black Mirror Came Together, Wired, 28.12.2018
The inside story of Bandersnatch, the weirdest Black Mirror tale yet, Wired.co.uk, 28.12.2018


Atualização 30.12.2018
Fluxograma completo de "Bandersnatch" (2018)

dezembro 27, 2018

Experienciar como Humano

Tenho passado os últimos anos em busca de variáveis e modelos capazes de dar conta da essência e espectro que definem a Experiência Humana. Motiva-me a identificação daquilo que suporta a nossa experiência, da sua construção e variabilidade, para assim poder conceber modelos de interação humano-computador no campo do design de narrativa interativa (com propriedades de agência, jogo ou procedimentais) mais efetivos, ou seja, mais consentâneos com as propriedades ótimas do ser-humano. Nesse sentido, as leituras têm sido diversas: da psicologia à filosofia, passando pela cibernética, neurociência, computação, fenomenologia, emoção, desenvolvimento, biologia, etc., no fundo tudo aquilo que, de um modo ou de outro, tem servido as ciências cognitivas nas últimas décadas. Como sempre, em qualquer campo do conhecimento mas mais acentuado ainda no mundo multidisciplinar, quanto mais fundo escavamos mais problemas encontramos, mais dúvidas desenvolvemos, menos certezas conseguimos, mas não deixa de ser interessante o modo como vamos encontrando pontes entre as diferentes disciplinas, e as vamos anotando como espécie de nós relevantes. Estes elementos dão conta de conclusões provenientes de fundamentos díspares, mas que pela sua semelhança carregam consigo elementos fundamentais do conhecimento, que nos podem ajudar a tornar mais evidente o design do conhecimento que buscamos.


Vem isto a propósito da minha mais recente leitura, “The Embodied Mind, Revised Edition Cognitive Science and Human Experience” de Francisco J. Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch (VTR). A primeira edição saiu em 1991, o Francisco Varela morreu em 2001, e em 2016 Thompson e Rosch resolveram voltar ao livro e escrever longas introduções sobre o que se alterou, no conhecimento, ao longo das últimas décadas. A primeira edição foi recebida com grande entusiasmo na comunidade académica, com direito a resenhas de Daniel C. Dennett para o American Journal of Psychology (106, No. 1, 1993) e Hubert Dreyfus para o Mind (102:542-6, 1993). O livro apresenta várias nuances que lhe conferem um estatuto especial, desde logo a multidisciplinaridade dos autores: Varela, biólogo, Thompson, filósofo, e Rosch, psicóloga. Como se não bastasse, na ausência de conhecimento capaz de dar resposta à grande questão do livro, foram ainda buscar a filosofia do budismo.

O livro “Embodied Mind” fala, como o subtítulo diz, sobre as ciências cognitivas, procurando estabelecer um quadro de análise sobre a Experiência Humana. Era então, em face do que disse acima, mesmo isto que eu precisava, e só pecava por chegar tarde a ele, embora tenha de dizer que se lia constantes referências ao mesmo, nem sempre era pelas suas qualidades. Queiramos ou não, a multidisciplinaridade continua a gerar apreensão na maior parte dos académicos, e se lhe juntarmos conhecimento não validado experimentalmente (como o budismo) ainda pior. Podemos dizer que o livro está dividido em duas partes, uma primeira explicativa das Ciência Cognitivas, da sua génese, aceitação e transformação, até à identificação do seu problema — a incapacidade de definir a experiência humana —, e a segunda parte em que se apresenta uma resposta, a partir de diferentes ciências e filosofias, que é definida pelos autores como Enativismo.

Os autores começam por apontar um problema de partida nas ciências cognitivas, originadas na sua base das ciências da computação e da informação, que procuravam compreender a experiência como mera entrada e processamento de dados. Ou seja, a experiência humana seria construída numa base linear orientada a estímulos, assente numa espécie de processo sequencial computacional. Este cognitivismo clássico foi sendo depois re-trabalhado, com as neurociências a alargarem o seu entendimento com abordagens que ainda hoje são aceites, e que nos dizem que o nosso cérebro funciona de um modo não-linear, processando em paralelo e de modos distribuídos. Diga-se que nada que os artistas já não soubessem, basta olhar para o experimentalismo literário do modernismo (1910-1930), ou recordar o seminal artigo de Vannevar Bush, “As We May Think” (1945) responsável pelas bases daquilo que a internet veio a ser. Claro que esse classicismo foi originado, em grande medida, pela recusa do estudo do interior, da consciência, algo que a fenomenologia e a psicanálise abraçaram, mas foram sempre olhadas de lado pelas ditas ciências. E ainda hoje, as neurociências continuam investindo tudo na senda biológica e externa, na esperança de identificar objetivamente marcas do funcionamento interior. Neste sentido, se as neurociências conseguiram contribuir para a compreensão do funcionamento do cérebro, contribuíram até hoje pouco para a compreensão da Experiência em si.

Repare-se na contradição em que vivemos que subsiste até aos dias de hoje. As neurociências dizem-nos que o Eu é uma ilusão criada pelo cérebro, que aquilo a que chamamos consciência não passa de uma simulação neuronal, recentemente Anil Seth  chamou-lhe mesmo “alucinação partilhada”. Contudo, pessoalmente, "sentimo-nos como pessoas individuais, capazes de contactar diretamente com o mundo exterior". Isto agrava-se quando reequacionamos a ciência neste quadro. Se por um lado, acreditarmos no que esta nos diz — que a nossa experiência não passa de uma simulação —, então teremos de aceitar que a própria ciência não passa de uma ilusão, já que ela não se pode colocar “do lado de fora”. Por outro lado, se decidirmos seguir o nosso instinto experiencial, negar a evidência científica, então estaremos a colocar em jogo a própria experiência que precisa da ciência para avançar na compreensão de si. Isto embate ainda naquilo que os autores definem como potencial niilismo, de qualquer uma das opções. É a estes problemas que VTR tentam dar resposta, questionando-se: “será inevitável esta discrepância entre o conhecimento científico e a experiência?” e “seria possível reconciliar as ciências cognitivas e a experiência humana de algum modo?”

A abordagem proposta por VTR assenta em vários domínios, da fenomenologia à biologia, passando pela filosofia budista do mindfulness. Do lado da fenomenologia, temos a análise da experiência objetiva, a partir de processos reflexivos subjetivos, recusando a possibilidade do estudo empírico, o que não ajudava completamente ao que se pretendia, por isso VTR acabaram procurando no budismo. Aí foram buscar teorizações em redor da meditação, que segundo as mesmas, permitiriam levar-nos a um ponto de análise concreta da Experiência Humana. Num processo de meditação, somos levados a esvaziar a mente de tudo o que é exterior, os budistas referem que o treino intensivo e o seu objetivo final é chegar ao tibetano "rigpa" (o verdadeiro eu, ou “existência original”) (ver Rinpoche, 1992 e Ricard, 2007). O problema desta abordagem budista, apontado logo à primeira edição por Dreyfus, e agora reconhecida por Thompson na nova edição, é que a observação interior da experiência altera a própria experiência. No fundo, a meditação budista não se diferencia da abordagem fenomenológica.

O verdadeiro contributo do livro adviria por meio de todas estas teorias, mas acima de tudo da biologia e das ciências da informação. Varela foi estudante de Humberto Maturana, um dos grandes mentores da evolução da cibernética, ciência dos sistemas, com semelhanças no pensamento a Gregory Bateson. Maturana, tinha trabalhado numa teorização sobre os sistemas vivos que serviria depois para definir a cognição, propondo o conceito de “autopoiesis” que definia os organismos vivos como sistemas capazes de se manter e reproduzir, tendo como exemplo a célula. Daqui Maturana e Varela vão propor em 1980, no livro “Autopoiesis and Cognition. The Realization of the Living”, aquilo que ficaria como conhecida como a sua teoria de cognição:
“Living systems are cognitive systems, and living as a process is a process of cognition. This statement is valid for all organisms, with or without a nervous system.” (p.13)
Nesta proposição, Maturana e Varela estão a dizer-nos que a cognição não é mais do que a nossa habilidade de nos adaptarmos a cada ambiente. Que a cognição é fruto da evolução interativa entre o sistema e o ambiente, a capacidade que este tem de reagir aos desafios que o ambiente vai apresentando, do que vão emergindo esquemas e experiências que acabam constituindo aquilo que definimos como cognição. Estamos a falar de teoria da evolução, mas estamos a falar da cognição enquanto processo emergente dessa evolução, capaz de gerar a consciência a partir do individuo e da sua relação com o ambiente. Sobre este processo de cognição, constrói-se depois o da comunicação, como vimos aqui recentemente por Tomasello, responsável pela partilha de experiências entre sistemas, conduzindo à criação de experiência geral partilhada, comum aos sistemas. Ou seja, ampliando a complexidade cognitiva do plano individual por via do plano coletivo.

Assim, a proposta final de VTR, apresentada como “embodied cognition”, diz-nos que a “cognition depends upon the kinds of experience that come from having a body with various sensorimotor capacities, and second, that these individual sensorimotor capacities are themselves embedded in a more encompassing biological, psychological and cultural context." (p.172-173), a partir do que vão apresentar o seu conceito de Enativismo:
"emphasize the growing conviction that cognition is not the representation of a pre-given world by a pre-given mind but is rather the enactment of a world and a mind on the basis of a history of the variety of actions that a being in the world performs" (p.9)
O mais interessante desta proposta é: por um lado, a sua relação com uma proposta de Jerome Bruner, sobre os três modos de representação do conhecimento — "enactive", "iconic", "symbolic" (1966); e por outro, a oposição entre as definições de representação. VTR batalham muito para eliminar a ideia de “representação”, já que essa pressupõe a tal mímica de um mundo exterior que querem evitar. Pois se existe um mundo exterior, voltamos ao problema anterior, da experiência como ilusão ou não desse mundo. Seguindo o enativismo, não existe o mundo exterior e a mente que o copia, mas ambas fazem parte de um mesmo todo. No caso da definição de Bruner, a representação em modo enativa, refere-se ao modo como o conhecimento se constrói pelo indivíduo, se este é construído por via do “aprender fazendo”, ou pela via da cópia por metáforas, ou ainda de alto-nível, simbólica. Podendo dizer que existe uma contradição, não a vejo enquanto tal, já que a recusa da palavra representação no caso VTR tem mais que ver com valor semântico atribuído à palavra. Aliás, por isso mesmo as teorias do enativismo de VTR têm sido ligadas à "cognição situada", e ainda discutidas com preceitos já muitas vezes utilizados nas discussões do conhecimento tácito de Polanyi (1966).

Para finalizar, não quero deixar de ligar esta abordagem do enativismo, como cognição assente na autopoieses, a uma outra ideia, a do Tempo que aqui trouxe a partir de Carlo Rovelli. O tempo, segundo Rovelli, não é entidade ou propriedade, mas é movimento. Deste modo, argumenta que a realidade tal como a concebemos, feita de objetos, não existe, já que tudo não passa de movimento contínuo e perpétuo para a desintegração. Neste sentido, poderíamos dizer: a cognição não parte de um Eu para copiar um Mundo exterior, já que nem o mundo existe, nem o Eu existe, tudo não passa de um processo continuado, em que pela enação construímos e reconstruímos, um Eu e um Mundo, até ao seu desaparecimento completo, ou regresso ao caos.

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.

dezembro 22, 2018

Lógica no suporte da narrativa

"Return of the Obra Dinn" (2018) é o último jogo de Lucas Pope, mais conhecido pelo brilhante "Papers, Please" (2013), que volta a colocar-nos no lugar de um profissional que tem de executar um trabalho, neste caso somos um perito de uma agência de seguros que tem de fazer um relatório sobre o que se terá passado num barco perdido em alto-mar no século XIX, que entretanto deu à costa. O jogo assume o velho desenho das histórias de detetives, e nós assumimos o papel do detetive, só que desta vez não temos de descobrir uma morte mas sessenta.





Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.

O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.

Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.

Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.