dezembro 30, 2018

Histórias de engodo

A pouco mais de meio do livro “Bird Box” (2014) desisti. Parecia pouco provável que me pudesse oferecer mais do que o pouco que tinha retirado até ali. Decidi então ver o filme para poder mais rapidamente fechar o capítulo da experiência. Se o livro tinha dado pouco, o filme nada deu. Admito que o problema seja meu, acreditei que era um thriller e afinal era apenas uma história de terror. Quando assim é, interessa apenas o medo e o susto, a coerência causal é completamente secundária.


Aproximei-me de “Bird Box” por causa de um cartaz da Netflix que apresentava uma mãe de olhos vendados a abraçar os filhos (IMDB). Procurei saber mais, e encontrei uma espécie de grande comunidade seguidora do livro, com as resenhas mais elogiosas e muitas estrelas. Por outro lado, o filme contava com Sandra Bullock e John Malcovich, e realização de Susanne Bier, não podia ser um simples filme de terror! Assumi-o como thriller pós-apocalíptico, recordei “The Road” (2006) de Cormac McCarthy e “Ensaio sobre a Cegueira” (1995) do Saramago, por isso decidi ler o livro primeiro. Mas rapidamente percebi que tinha pedido demais, não só pela escrita, mas por toda a manipulação emocional — nomeadamente os suicídios provocados pelo “evento”. Ao fim de poucas páginas comecei a inclinar-me para “The Happening” (2008) de M. Night Shyamalan, mas até aí me perdeu, nada parecia ter sustentação ou plausibilidade. Existe aqui savoir-faire, mas está posto ao serviço da mera inovação, como quem está a criar um novo produto: pega-se nas histórias pós-apocalípticas, tão em voga, introduz-se-lhe uma variação no gerador de medo, e está feito.


Entretanto vi, por estes dias e por mero acaso, “The Quiet Place” (2018) de John Krasinski (IMDB), com uma premissa exatamente igual, variando apenas o sentido (visão / audição). Se em “Bird Box” a fórmula pós-apocalíptica é pseudo-inovada pelo facto das pessoas terem de se vendar, já que o simples olhar para as “criaturas” (nunca sabemos se são mesmo criaturas) as transforma e faz com que se suicidem. Em “The Quiet Place”, a emissão de qualquer ruído atrai criaturas que circulam a grande velocidade e destroem tudo o que crie som. Nas duas histórias, nada se sustenta. Criar duas crianças durante 5 anos, num mundo destruído, com recurso a enlatados roubados de casas distantes, a que se acede às apalpadelas! Ou andar de carro, realizar plantações inteiras de milho, e dar a luz, sem emitir qualquer som!

Ambas as premissas, “Bird Box” e “The Quiet Place”, faziam sentido num qualquer livro de pequenos contos de terror. São trabalhos de pura manipulação da atenção dos leitores/espectadores, não há nada ali, mas quem escreve sabe puxar os cordelinhos da nossa cognição e emoção para nos manter agarrados. Se escrever um livro inteiro era desperdício do talento de qualquer escritor, produzir filmes que custam milhões com base nisto é um autêntico hino à ociosidade da nossa espécie.

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