maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.

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