Eça de Queiroz
Quero deixar algumas linhas sobre assunto, não apenas baseadas em leituras científicas, mas também na minha experiência pessoal de leitura, já que li "Os Maias" quando andava no liceu, com 16 anos, e voltei a lê-lo recentemente, com 42 anos (notas desta última leitura). Posso dizer desde já que foram experiências completamente diferentes, ao ponto de não conseguir ligar qualquer memória afetiva da primeira leitura com a mais recente. Pergunto-me porquê, e a razão não é muito difícil de descortinar, não terá havido ligação afetiva na primeira leitura. A leitura por obrigatoriedade tem destes problemas. Não acontece só com os livros, acontece com tudo, com o cinema, com os jogos, com a maioria dos prazeres da nossa vida. Não é por acaso que passámos os últimos 44 anos a prezar a Liberdade, porque a liberdade é a base da criação da experiência humana individual. Se, experienciamos porque alguém nos obriga a tal, a emoção troca de lugar com a razão, e a experiência que nos deveria tocar o coração passa a tocar a racionalização. Queremos compreender porque somos obrigados a experienciar, e no meio disso perdemos a oportunidade de chegar a sentir.
É claro que este discurso nos coloca face a um dilema insustentável. Se a escola deve ter como missão, além da promoção do conhecimento, a criação de sociedade, para o que dota os indivíduos de conhecimento comum que permite a emergência da comunidade, como é que tal pode acontecer se aquilo que se estuda é feito por obrigação, perdendo-se a fruição. Na verdade, isto não deve ser dilema porque quando estudamos Biologia ou Matemática, também não o fazemos para fruir, fazem-lo por necessidade de elevar o conhecimento dessa sociedade, para sermos capazes de operar a outros níveis de abstração da realidade. Então porque não pensar a literatura da mesma forma? E se em vez de obrigar à leitura de obras completas, livros com mais de meio milhar de páginas, a literatura não é apenas feita de romances, e não existe autor que não tenha escrito contos, porque não optar por trabalhar com contos?
Se pensarmos em concreto no que estamos a exigir cognitivamente a um miúdo de 16 anos para que leia "Os Maias", perceberemos o quão desprovido de senso é. E não estou a falar de sociedade digital, de internet ou videojogos e o famigerado discurso do défice de atenção das novas gerações. Podemos pensar em 1980, com um canal de televisão único, televisão a preto e branco, sem consolas, nem telemóveis. Estamos a falar de entreter a mente ao longo de centenas e centenas de páginas com uma escrita elaborada e detalhada, altamente estilizada com base em técnicas descritivas herdadas ainda do romantismo. Eça foi o nosso primeiro grande realista, mas foi-o mais no conteúdo do que na forma. Ler Eça não é propriamente simples, não porque use palavras caras, mas porque usa toda uma lógica descritiva da realidade que se enreda. O discurso está longe do modo direto que o realismo desenvolveu nos anos que sucederam a Eça, temos um discurso que se cobre de insinuações sobre aquilo que quer dizer, em vez de simplesmente o dizer. Nada disto é problemático quando estamos preparados para tal, quando já lemos muitas outras obras e aceitamos o contrato daquele tipo de escrita porque desejamos entrar na obra. Quando somos obrigados a ler e temos de realizar um esforço enorme para compreender o que estamos a ler, e na nossa frente esperam-nos ainda 800 páginas, é fácil entrar em desespero, chamar raios e coriscos à escola, aos professores, e desistir.
Mas o problema não é só estético. O problema agrava-se quando começamos a desconstruir o que Eça nos quer dizer com a sua obra. Temos de pensar que somos um leitor com 16 anos, que no século XIX poderíamos ser já um adulto casado com filhos, mas hoje somos quase uma criança ainda. Este leitor não compreende o que significa lidar com filhos, menos ainda adultos, perdê-los, seja por que motivo for. Está longe de compreender as nuances das relações adultas. Podemos até dizer, 'mas é bom que sejam confrontados com tal', sim, talvez se fosse apenas este o problema, mas como vimos assim não é, e adensa-se. A realidade de Eça é de um Portugal do século XIX, o que acaba distanciando ainda mais todos os problemas que aqueles personagens sofrem. Se os miúdos não têm muito contexto sobre as mensagens subtis entre adultos, menos ainda têm sobre o contexto político desse tempo. Não podemos esquecer que Eça escreve para os seus pares, do alto de uma vida carregada de experiência diplomática, o livro está pejado de detalhes que nos adoçam a leitura mas é preciso contexto para chegar a eles. E não se iludam, muito desse contexto não se dá nas aulas, constrói-se ao longo da vida, com experiências, com o cruzamento de leituras com experiências reais, que nos permitem ir criando associações de ideias a experiências, e fazer de nós pessoas mais adultas e sensíveis.
E continua, porque a componente mais intrincada de romance, de desenvolvimento e progressão de ação só surge na terceira parte do livro. Durante mais de metade do livro, somos arrastados por entre contextualizações e descrições, ou seja, muita exposição e pouco drama, o que vem complicar a manutenção do interesse dos leitores menos preparados para a leitura. Ser exposto a algo pode ser interessante, mas é um processo por natureza desprovido de emoção, e por isso dificilmente sustenta o interesse se o leitor não conseguir ligar essa exposição a contexto próprio, edificando-o com as suas próprias emoções. Mas o drama não é só emoção, é acima de tudo transformação. Daí que a progressão seja o maior garante de interesse dos leitores, porque estes focam-se no que muda, querendo saber porque muda e como muda. Os leitores menos preparados conseguem facilmente ler Dan Brown ou J.K. Rowling exatamente por causa disto, porque a mudança desperta a curiosidade para saber o que vai acontecer a seguir, fazendo com que a atenção se mantenha alerta e o interesse estável. "Os Maias" são uma grande obra, elogiada pela crítica internacional, exatamente por não se deixar levar por esse facilitador narrativo, por delinear uma estilística própria que obriga o leitor a trabalhar para mais tarde ser recompensado. Mas um aluno de 16 anos não é um crítico literário.
Podemos simplesmente obrigar, assim como obrigamos a decorar os rios de Portugal ou a tabela periódica, ou podemos pensar de forma diferente. Podemos pensar que aquilo que queremos criar é o conhecimento comum sobre Eça de Queiroz, prolongar o seu legado, criar um esteiro em que a sua obra sirva o cânone de que devemos, enquanto país, partir. (Aproveito para questionar aqui a nossa sociedade, se é verdadeiramente isto que queremos, porque não está Eça no nosso Panteão?). E para isso podemos usar obras mais curtas, contos, que darão muito mais espaço ao professor para nas aulas falar do autor, do tempo em que viveu, do país que conheceu e da sua relação com o país de hoje. A partir desses contos pode-se aprender sobre o estilo e estética de Eça, pode-se iniciar o conhecimento, e aos poucos aprender a amar Eça, a amar a língua portuguesa, e pode ser que no verão seguinte o aluno, por sua própria iniciativa, passe as férias junto de "Os Maias".
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