Foi uma das sequelas anunciadas que mais me incomodou. Não fazia sentido, não era necessária. Nem mesmo um remake já que “Blade Runner” (1982) consegue o extraordinário feito de se manter, no campo audiovisual, para não falar das ideias, completamente atual. Por isso e apesar de ir lendo boas impressões, não me aproximei inicialmente do filme. Agora que o vi, não quero deixar de agradecer a todos os que lhe deram “corpo”, desde o empenho de Ridley Scott na promoção do projeto e enquanto Produtor Executivo, à mestria de Denis Villeneuve (realização), Hampton Fancher (história), Benjamin Wallfisch (música), Roger Deakins (cinematografia), Joe Walker (montagem), Paul Inglis (arte) e tantos outros responsáveis, por muitas outras partes — desde o design de som, efeitos visuais, decoração, cenários,
props, e maquilhagem ao guarda-roupa. Deixo os atores de fora? Não, mas o filme é tanto mais, e é sempre deles que se fala.
Em termos puramente experienciais, “Blade Runner 2049” marca o ano juntamente com “
Dunkirk” (2017), muito graças às extraordinárias equipas criativas que foram capazes de levar ambos os projetos à pureza da perfeição audiovisual, nas diversas necessidades que compõem uma obra cinematográfica. Já no campo das ideias e do discurso “Blade Runner 2049” afirma-se e destaca-se. Socorre-se de um minimalismo expressivo, que claramente não lhe poderia granjear grande sucesso de bilheteira, mas sem isso teria sido apenas mais um filme sobre andróides. O que tem para dizer é impactante, porque muito hábil na relação empática, o que torna inevitável recordar o universo de “
Children of Men” (2006). Assim, e continuando profundamente distópico, existe algo de muito distinto neste segundo filme, uma centelha de esperança!
Como
pergunta Jorge Martins Rosa, especialista em Philip K. Dick (PKD), será esta ainda uma obra dickiana? Sim e não, exatamente pelo que disse acima, porque a distopia ganha aqui asas de utopia, algo longe do mundo dickiano. Apesar desta ligeira discordância, recomendo a leitura do texto do Jorge a quem quiser ganhar acesso às múltiplas camadas enterradas por debaixo da superfície plástica do filme. Mais ainda porque concordo com a essência do texto ao definir como pergunta central do filme, imbuída da visão dickiana: “O que é o humano?”
Concordo com esta definição, não apenas por partir de PKD, mas porque passei todo o filme a questionar-me sobre isso. Não, não foi a questionar quem de entre os personagens era humano e quem era
replicant, essa questão para mim ficou lá atrás, em 1982. A minha questão foi perceber se em 2049 ainda existiam humanos, daí a colagem “Children of Men” ganhar toda uma enorme relevância, pela antecipação de um futuro anunciado em “
AI: Artificial Intelligence” (2001). Mas esse futuro é em “Blade Runner 2049” assumido de modo muito distinto, o qual já qualifiquei acima de utópico, mas tem o seu quê de distópico, já que tudo o que parece mover aqueles que nos sucederão, é ser-se humano! Foi aqui que a história me perdeu, em parte, fez-me descolar da fantasia, porque foi longe demais, não no feito, mas no sentido desse feito, porque em essência me pareceram efeitos dos resquícios de criador, ou talvez melhor, chamar-lhe colonizador (porque não apenas cria como condiciona a cultura).
Existe tanto por onde pegar em “Blade Runner 2049”, o seu minimalismo ajuda, mas é difícil fazê-lo e manter o texto livre de
spoilers. Contudo, passados vários filmes e livros sobre este tema, sinto que algo se vai esgotando na temática, porque atingimos uma espécie de fronteira do
conhecimento sobre nós mesmos, não falo pela mera separação entre humano e máquina, mas antes pelo que aponta como marca do nosso devir, porque ganhámos a noção de que chegará o momento em que passaremos o testemunho. Sim, existe aqui um piscar de olhos a um caminho alternativo, ainda que muito breve, apresentado em "
Prometheus" (2012), talvez porque Scott também tenha batido contra esta parede. E por isso, talvez seja eu agora quem termina este texto num tom distópico, talvez por homenagem ao dickiano que há em mim, contudo olho para esse momento como parte de algo maior que nós, e por isso mais utópico que distópico.
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