abril 08, 2018

La Casa de Papel (2017)

No final da linha temos envolvimento completo, empatia absoluta. Roubar e fazer reféns menores é algo que só pode ser feito por pessoas más, pessoas dispostas a violar tudo o que de mais sagrado construímos enquanto sociedade e civilização, mas no final, por debaixo das máscaras dessa maldade — sejam Dali, Munch ou Warhol — são humanos que emergem, humanos como todos nós. No final, torna-se difícil se não impossível apontar quem são os vilões. Teremos sido manipulados?


O melhor deve-se sem dúvida ao criador e principal guionista, Alex Pina, e à restante equipa de guionistas — Esther Martínez Lobato, Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal, Esther Morales. A premissa por detrás do assalto ao banco consegue ser bastante original, todo o desenrolar, ainda que com pequenos problemas, agarra-nos, e o final, algo que desde o início acreditei estar condenado ao fracasso, já que os clichês se repetiam aqui e ali, atira-nos ao tapete convertendo-nos ao maestria de Alex Pina.

É preciso competências técnicas de excelência para pegar no melhor da máquina do storytelling americano, desenvolvido ao longo de um século por Hollywood e altamente aperfeiçoado nas últimas duas décadas pelas cadeias de televisão americana privadas, pô-la a rolar e mantê-la viva ao longo de quase 20 horas, mas para tocar o sentir dos espetadores desta forma, é preciso saber ler a contemporaneidade e apertar os botões corretos que agitam e fazem mexer as nossas crenças.


Assim, se a série conta com excelentes atores, muito boa cinematografia (para televisão) e ótima direção de arte, tudo é operado tecnicamente com um fim muito concreto: tornar o mais verosímil possível aquilo que o guião tem para oferecer. Ele é a estrela, é o guião que nos agarra e mantém tensos, em pulgas, continuamente a tentar adivinhar o que vai acontecer a seguir, e ao mesmo tempo consegue surpreender até ao final. A construção dos núcleos narrativos não segue a tradicional linearidade horizontal, está desenhada em 360º por meio de ganchos que enlaçam as ações e personagens num enorme labirinto de causas e efeitos que se vão desdobrando em camadas, gerando no espetador sempre a expectativa de existir algo mais por descobrir.


Tudo isto seria muito bom, diria até por descargo de consciência muito bom entretenimento, mas não o direi porque temos mais, temos genialidade. Alex Pina estabelece um paralelismo entre o que está a acontecer dentro da série e aquilo que está acontecer com os espetadores agarrados à série, indo ao ponto de desmontar na nossa frente tudo aquilo que está a fazer. Cedo começa a descortinar o síndrome de Estocolmo para descrever como se criam paixões em situações de refém, espelhando o nosso próprio lugar como reféns da série; depois toda a relação com os media, que vai sendo amiúde relatada atingindo o auge com a narrativa sobre os assaltantes — David contra Golias, ou no caso Camarões contra Brasil — na opinião pública, e em nós espetadores; todo o jogo entre os que se apaixonam por interesse e os que verdadeiramente caem na rede de Afrodite mas com todas as forças procuram escapar-lhe das malhas, tal como os espetadores; tudo e muito mais vai toldando a nossa própria sensibilidade, fazendo com que ao longo do tempo cedamos, mais uma vez como cedem os personagens dentro da série, colocando em questão as suas, e nossas, agulhas morais. Alex Pina é uma espécie de ilusionista que não se importa de mostrar os seus truques, porque sabe-se capaz de nos manter ainda assim sempre dentro da ilusão. No fundo, quem era o Professor se não o próprio Alex Pina.


CODA
Passar maus por bons não é algo novo, nas últimas décadas os videojogos foram imensamente atacados por o fazerem — o maior expoente foi "Grand Theft Auto" (1997-2013) — depois vieram as séries de sucesso repetir a fórmula — com casos como "Breaking Bad" (2008-2013) —, mas muito antes disso já tínhamos tido obras como "The Godfather" (1972), para não falar mais concretamente em "Bonnie and Clyde" (1967) (poderá existir a tentação de juntar aqui o mito de Robin Hood, mas são de ordens muito diferentes). Na verdade, falamos de um fenómeno emergente da segunda metade do século XX, marcando bastante bem os momentos em que o pensamento pós-modernista começa a emergir. Já não se podia ir para além do experimentalismo do modernismo, já se tinham destruído todas as noções estéticas do belo, por isso restava agora apenas quebrar as noções morais do bem. É isto que temos aqui, no fundo algo melhor entendível se definido como "pós-verdade". A realidade do mundo atual foi completamente transformada por uma sociedade muito mais formada, dotada de várias literacias que lhe permitem laborar mentalmente no abstracto, e assim compreender a constituição da Ilusão em que vive. Esta já tinha percebido que a verdade não existia, mas ainda não tinha percebido que era criada por cada sujeito à medida da sua mundividência, o "fim das meta-narrativas" deixava de ser um postulado teórico e passava a facto para milhões.

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